UMA GRANDE ROUBADA

Quando fomos à capital da Argentina pela primeira vez, em 2008, ainda turistas inexperientes em países estrangeiros, ficamos circulando pelo microcentro fazendo poses e registrando em fotos aqueles momentos de delirante alegria e grandiosa descoberta. Íamos do obelisco à Av. Corrientes, da Rua Florida ao bairro Santa Fé, e não dávamos a menor importância ao tempo passando rápido como uma ventania. Quando verificamos a hora percebemos como estava tarde e ainda não tínhamos almoçado. Como naquele momento nos encontrávamos nas proximidades da Av. Roque Saenz Peña, fomos apressados à procura de algum restaurante das imediações. Vimos alguns nada interessantes, outros sem graça, até que finalmente nos deparamos com aquele que nos pareceu o mais atraente. Entramos no ambiente transbordando comida e aroma por todos os recantos, era um self service e, apesar do horário, estava cheio. Notamos, na entrada, um cartaz anunciando determinado valor em peso, com desconto, para casais, bem encaixado nos nossos planos.

Depois de nos servimos como determinava nosso apetite, fomos para uma mesa satisfeitos principalmente pelo excelente valor que pagaríamos por dois almoços com muita carne argentina e sobremesa incluída e ficamos conversando descontraídos e felizes. Súbito, como se já estivesse preparado e a nos observar para tomar essa atitude, um garçom com ar de quem acordou com o pé esquerdo colocou sobre nossa mesa o valor da despesa e aguardou. Peguei a nota para examinar e tomei um baita susto: o valor cobrado era o dobro do anunciado à entrada. Isso, porém, não foi motivo para preocupar-me, afinal de contas equívocos acontecem em qualquer lugar. Chamei-o e informei sobre o engano dele. Para minha surpresa, o sujeito ficou ainda mais carrancudo e esbravejou afirmando que o valor correto era o escrito na nota, aquele anuncio na porta não valia nada. Então atrevi-me a dizer que pagaria conforme apregoava a promoção exposta na porta do restaurante, e foi então que, a partir desse momento, o troglodita pareceu crescer diante de mim ao se aproximar rosnando entredentes: " usted pagará la cantidad que está en la nota!" Eu ainda tentei balbuciar algo apontando para o anúncio, mas ele quase deu um pulo na direção indicada por meu dedo, arrancou o papel onde se via a promoção e o rasgou, jogando os pedaços na lixeira. Depois, respirando com dificuldade, repetiu, mal-encarado:"usted pagará la cantidad que esta´en la nota"!

Minha esposa pegou-me a mão, contemporizando, o rosto apreensivo, o olhar súplice comunicando que eu não dissesse mais nada. O salafrário do garçom, nesse ínterim, se achegara ainda mais perto de mim com ar ameaçador. Como seria de esperar, perdemos o apetite. Não havia a quem recorrer, o melhor a fazer seria sair imediatamente daquele covil para nunca mais voltar. Jamais poderíamos esquecer nossa condição de estrangeiros num País cujos habitantes não morrem de amores por nós, brasileiros. Assim, levantamo-nos e nos dirigimos ao caixa, pagamos a conta segundo o valor exigido pelo brutamontes e saímos. Aborrecidos, chateados, sem olhar para trás e dispostos a nunca mais tornar, sequer, a direcionar o olhar à fachada daquele simulacro de restaurante onde trabalhava um orangotango imitação de ser humano.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 26/10/2010
Reeditado em 25/07/2021
Código do texto: T2578618
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