DOAÇÃO
Resolvi doar meus órgãos. Espero que saibam usá-los e desejo que eles sejam transplantados em alguens que possam ver os acontecimentos de 2020.
Que os meus olhos no rosto de uma linda menina ou de uma velhinha feliz possam ver um por do sol no alto de Ondina, as flores de inverno dos campos cheirosos das “Lavras Diamantinas” ou uma malhada de fumo cheirando a serol, plantada nos altiplanos do Campo Limpo.
O novo dono do meu fígado deve tomar três doses de uísque por dia para que ele não sinta saudade de mim e tenha que recompor-se na manhã seguinte. As minhas mãos em outros braços têm que aprender o poder do toque para acariciar a carência de todos os meninos e meninas que nunca receberam a carícia do toque cálido de um pai, sonhado. Os meus pés têm que pisar descalços todos os solos. Que o novo dono nunca os calce com sapatos, chinelos, sandálias ou alpercatas e que sempre nus, livres e felizes andem sobre muitos horizontes e verdes veredas. Os meus cabelos, grisalhos e assustados podem ser implantados em uma bola de bilhar vermelha ou numa copra de coco verde, para que vire um mineral, um vegetal e viva nos três reinos da natureza, tornando-me fugaz e desmedido. Os meus rins poderiam ser colocados em diabéticos, aidéticos, evangélicos, satânicos, parasitos, preguiçosos, proscritos, malqueridos, discutidos e excluídos. Eles saberão filtrar todos os seus defeitos, todas as suas virtudes para deixá-los saudáveis e felizes. A minha medula óssea seria transplantada para todas as pessoas tortas e efêmeras, para que se tornem retas, cordatas e eternas.
Preocupa-me a doação do meu coração. Quem será o felizardo que vai herdá-lo? Felizardo sim, porque o meu coração é tão melhor que eu, que eu nem sei porque Deus deu ele à mim! Meu coração é tão amoroso que consegue dominar meu cérebro, quando eu tento virar normal e transforma-me em irresponsável, irreverente, cheio de desejos inconfessáveis, paixões inimaginadas e imaginações libidinosas. Aí meu coração interfere e torna-me total, inconformado, envergonhado e somente mal.; Dono de maldades cândidas, inexpresivas, tão bobinhas que, vez por outra como um anjo-andorinha ele pousa na minha parte mais mal e bica-lhe e bica-lhe até transformá-la em alento.
Meu cérebro eu não recomendo a ninguém. Ele é muito rápido, pérfido e induz-me a ser falso, covarde, genioso, intolerante e quando eu peço ajuda ao coração ele desliga-se e me faz o mais esquecido dos mortais. Minha mãe sempre me diz: você é muito esquecido. Não sei como é ser muito esquecido, só sei que travo diariamente uma luta contra o meu cérebro. Ele me quere sóbrio, eu torno-me bêbado; ele me quer herói eu acovardo-me com o primeiro trovão do início das trovoadas de dezembro; ele me quer ágil e impulsivo, eu quedo-me contemplativo. Não aconselho o meu cérebro para ninguém, a não ser que seja transplantado junto com o meu coração. Se os dois não forem transplantados na mesma pessoa, as consequências podem ser terríveis.
Que retirem tudo de mim. Deixem-me oco. Assim, desfigurado e vazio deixem-me no fundo de um caixão feito para indigente, forrado com tecido roxo, ornado com frágeis arabescos de papel prateado.. Descerei mais leve ao fundo dos sete palmos e se não usarem os meus tímpanos e acessórios outros do ouvido, poderei ouvir o baque surdo da terra caindo sobre mim e de vez em quando o baque suave de umas flores caindo junto, certamente jogada por mãos chorosas e lábios silentes. Depois, somente o silêncio eterno para meditar e sonhar com a vida.
P.S. O meu grupo sanguíneo é B positivo e tenho 25.004 gens.
Agosto de 2004 aos 17 anos da morte de Drummond