Uma página em branco (mais uma curta viagem)

Hoje acordei com uma enorme vontade de escrever, aliás, ontem á noite a meio da leitura de um livro tive vontade de escrever algo, mas era já muito tarde e à seguir à leitura deveria vir o sono e não o discorrer de pensamentos…Mas acordei com essa vontade de preencher esta folha que todos os dias me aparece em branco, mas que todos os dias eu a preencho…

E foi a seguir ao café da tarde que me assaltou uma ideia…Estava eu na paragem de autocarro sem nada para anotar, e por isso lá tive de a esconder nos corredores da memória recente, concentrar-me no som do Mp3 e esperar chegar o mais depressa a casa para a verter para o papel…

E assim foi, e é assim que viajo para a década de 90, no ano em que sai da tropa e um mundo novo se abria aos meus pés, um mundo de oportunidades sociais e de estudo, o ano em que entrei para o Instituto onde mais tarde me licenciaria.

Mas nesse Verão, e após os exames de acesso, interessava-me gozar a liberdade recente e aproveitar aqueles dias que pareciam sem fim

Nesse verão infinito tinha combinado passar uns dias acampado algures no norte de Portugal, bem encostado à fronteira espanhola.

Todos estávamos em vésperas de entrar no ensino Superior e, na lógica deste, os verões que se seguiriam seriam em parte preenchidos a estudar para os exames de Setembro, e depois, depois acabaríamos o Curso e os meses de férias seriam apenas um, e essas férias seriam racionadas, e depois…embora não o disséssemos sabíamos bem que os nossos destinos se separariam e aquele verão seria de facto o último em que estaríamos juntos…

Talvez por isso passámos os dias a passear, a tocar guitarra à volta de uma fogueira enquanto a noite caía, a recordarmos outros tempos juntos e a tentarmos inventar novas férias, com novos planos de outros momentos bem passados.

Com o Setembro à porta, o tempo começava a encurtar e a monotonia minou lentamente uma paciência contemplativa…Havia que fazer algo de diferente, algo que nunca mais nos esquecêssemos nas nossas vidas, algo que fosse um momento o recordássemos porque o passámos juntos.

E começámos a pensar, até que houve alguém que pegou num mapa e se lembrou que havia em Espanha um monte quase inacessível, crença esta reforçada pelo tremendo calor que fazia, isto na casa dos quarenta graus…Era algo de inacessível de facto, era algo que tínhamos de fazer.

E se assim o pensámos, assim o fizemos, partindo de manhã com o farnel e água a postos rumo ao objectivo que deveria ser alcançado ao início da tarde, dado ser a uns bons quarenta quilómetros do local onde estávamos, e de permeio haver um rio sem ponte que tinha de ser atravessado numa espécie de uma balsa, na recordação de tempos antigos, onde não havia pontes e vias para todos os lados, que tornavam o longe tão perto.

E para não variar eu era o mais carregado, na minha mania de levar sempre a casa atrás, peso a mais, e a mais ia um livro que tinha acabado de escrever, que ao fim de uns quilómetros começou a pesar…Era um hábito que adquiri desde que comecei a escrever: levar os escritos para todo o lado, para lhes dar os quilómetros, as viagens que eu fazia, para pensar mais tarde comigo que aquele livro era viajado. E de facto eu levava tudo: roupa para todas as ocasiões climatéricas, comida para vários dias e…nenhuma água! Beberia pelo caminho, não querendo levar peso a mais…O que como se poderá ler daqui a algumas linhas foi uma decisão muito, mas muito inteligente…

Pelo caminho comprámos na única loja que vimos em solo espanhol o tabaquito para matar o vicio e porque lá era bem mais barato, e pelo caminho eu me apercebi da pouca existência de fontes, dado o monte ser numa espécie de ermo longínquo, sendo que de uma forma estóica e muito pouco inteligente decidi não beber água, a menos que ma oferecessem, porque não queria dar o braço a torcer da minha ideia de levar o que era necessário menos o indispensável.

Mas a coisa até correu bem, e à hora prevista lá estávamos no sopé do monte, com mais de 400 metros que nos desafiava…Pelo caminho um simpático espanhol informou-nos que Havia uma estrada de terra batida que levava ao topo, mas nos enganámo-nos na forma de o abordar e quando lá chegámos a estrada ficava a uns bons quinhentos metros, que se fariam debaixo de um sol infernal…

Que se fariam para os outros…

Fascinado pela ideia parva que me surgiu num relâmpago, decido mentalmente fazer uma linha recta e atalhar a questão num corta-mato…Com ar de gozo os outros pensavam que eu estava a brincar…

Mas não estava: desde garoto que fazia corta-mato por onde quer que fosse, com a mania de não seguir os caminhos dos outros e procurar os alternativos…Tinha feito corta-mato nas principais serras de Portugal, e sempre me saíra bem, apesar de muitas vezes, e sem que o soubesse, estar à beira da desgraça…E isto da psicologia era muito engraçado, pois se perante um desafio sempre tivera reforços positivos, de pouco me interessava as possíveis e hipotéticas consequências negativas, isso pertencia ao reino das probabilidades que nunca abordara, e por isso…

Despedi-me com um sorriso dos meus companheiros e companheiras, dizendo que lá os esperaria no topo…

E de facto, no inicio da subida a coisa correu bem, e eu até os podia ver à distancia, na estrada, enquanto eu ia já a um quarto do caminho…Mas não passei dai, porque um mato rasteiro deu lugar a enormes silvas e a rochedos que me barraram o caminho. Ainda tentei flanquear o obstáculo, mas este rodeava todo o monte, tornando este um obstáculo intransponível…Nunca me tinha acontecido tal, mas eu podia ser teimoso, mas não burro, reconhecendo a derrota e começando a descer, já com algumas feridas por todo o corpo, feridas das silvas e de algumas quedas que dei…

Era já tarde e por isso optei por voltar ao local de onde partira, esperando que os meus amigos no regresso lá passassem…

E vos garanto que foram as duas horas mais longas da minha vida: sem água, sem sombra, com um enorme calor sufocar-me, com as feridas a doer-me e com uma série de escorpiões que se passeavam pelo caminho…Entretive-me a fugir destes, a ler o livro e a rezar ao deus que não tinha para que o relógio se apressasse…

Por fim eles voltaram e ficaram estupefactos com o meu relato e aspecto…Sem ligar muito, atirei-me a um cantil de água, sorvendo-o duma forma quase desesperada…Depois…Bem depois fui olhado como um anti-heroi algo louco, mas destemido pelo purgatório que acabara de passar…Eles conquistaram o topo, e eu venci as minhas próprias resistências, aprendendo uma lição para o resto da vida, que nem sempre o caminho mais curto é o mais indicado, que mais vale perdermos algum tempo, mas desta maneira conseguirmos chegar em segurança ao nosso destino.

Dai a dois dias voltámos a casa, e como era previsível, os nossos destinos separaram-se.

Ainda bebi uns cafés com alguns deles, mas depois os cafés deram lugar a escassos telefonemas até que nos perdemos para sempre nessa estrada que é a estrada da vida…

Esta foi a única vez em que fui derrotado pela natureza, mas não me perguntem porquê, não me senti um perdedor, senti-me um vencedor, talvez porque a natureza nunca se vença, podemos ganhar algumas batalhas com ela, mas a guerra, essa estamos destinados a não ganharmos, talvez porque a natureza estava aqui antes de nós e estará depois de partirmos…