Socorramo-nos

Para os existencialistas,o pior que se pode fazer a um homem é separá-lo de sua potência.

Até recentemente guardei essa afirmação apenas pela sua força estética.Atualmente,guardo como uma tatuagem marcada dolorosamente na pele.

Meu trabalho é realizado junto a seres humanos,na tentativa de construir formas de socorrer no desamparo.Formei-me como médico,psiquiatra e psicoterapeuta nessa perspectiva.Sempre vi beleza nos acontecimentos improváveis da clínica,quando de dentro do buraco eu escutava um grito ,na u´ltima hora,da força de vida que ainda habitava aquela pessoa.

Mas,do começo de minha prática para cá,o mundo mudou muito.As intermediações entre quem atende e quem é atendido se multiplicaram.Hoje,dentro de um hospital,entre eu e o paciente,além do Estado,há as empresas parceiras do Estado,as prefeituras,os computadores ,os arquivos eletrônicos que tem de ser alimentados com os dados de quantos atendimentos são realizados,os diagnósticos,as medicações prescritas,e tudo que pode ser colocado num computador.Mídias,isto é,intermediações tendendo ao infinito.Médico e paciente pendurados em fluxos monumentais de informação conversível em capital.

Nessa encruzilhada de tantos sujeitos anônimos,o desamparo é a regra.Por muitas vezes,ao ouvir o paciente dizer:"não sei o que fazer",tenho vontade de responder:"eu também não".Mas sei que quem está lá para ser ouvido é ele,então respiro fundo e tento pensar alguma coisa.Ou me encosto na inércia do sistema,e preencho os papéis.(nos piores dias.)

O desamparo acontece quando o sujeito se vê na impotência quase total(ou quando é abandonado sem ter desenvolvido nenhuma potência ao longo de sua existência,seja de dias ou anos.)Quando é separado daquilo que sabe fazer,do jeito que sabe viver.E entre ele e seu mundo criam-se intermediações arbitrárias(o patrão,o estado,os arquivos,as tabelas,os protocolos.)

Acredito nas novas formas,nas inventadas,de interlocução,de abrigo em meio ao desamparo.E você?