Histórias...
Filha mais nova dentre quatro mulheres, sete anos me separam da terceira, onze da segunda e catorze da primeira. Todas dirão, com certeza, que não havia necessidade de tantos detalhes, com uma delas complementando que sou prolixa, mesmo.
Muito nova já constatei que minhas irmãs eram dotadas de uma beleza singular; destacavam-se em qualquer ambiente, atraindo sempre os olhares masculinos e femininos.
Uma possuía pernas imbatíveis além de curvas com perfeitas saliências, outra era comparada à Úrsula Andress, e um corpo de violão, para completar, fora dado à terceira.
Junto delas, era uma criança falante, atenta a tudo que faziam, vestiam e, principalmente, aos segredos que trocavam. Alguns eu acabava descobrindo, outros elas inventavam e me contavam, para terem um pouco de sossego.
Às vezes, observava meu corpo de criança no espelho, os ossos salientes, pernas finas e vinha a certeza desanimadora que, se um dia atraísse os mesmos olhares, seria em função da diferença, do contraste.
Essa crença era tão forte que me fazia sentir raiva do infeliz que dissesse que eu era bonita, ou fizesse qualquer alusão à beleza das “quatro” filhas de meus pais.
Mas isso durava pouco e logo estava eu acelerando o tempo, e me via usando as roupas que mais gostasse, de cada uma delas. Fazia uma montagem de mim mesma adulta; rosto de uma, corpo de outra e cabelos e pernas de outra ainda.
Em meio a tudo isso, um irmão, quatro anos mais velho, para quem elas me empurravam vez ou outra. Provocador, fazia tudo para me irritar, mas tinha doçura suficiente para, com o mesmo empenho, me alegrar.
Em casa vivia num mundo de vestidos, maquiagens e sapatos misturado com técnicas e dribles de futebol, construção de carrinhos de rolimã, mangas e jabuticabas devoradas nos galhos mais altos das árvores.
Meu pai estava sempre bem humorado, sorrindo e entrava em toda brincadeira que eu iniciasse. Já minha mãe não tinha o mesmo humor e os sorrisos eram mais raros e disfarçados, pois temia que ficássemos mal acostumados.
De duas coisas eu gostava especialmente: observar e imitar minhas irmãs e material escolar novo, sempre comprado pelo meu pai, menos resistente que minha mãe à minha insistência.
Olhar minhas irmãs era como deleitar-me antecipando meu futuro. Envolver-me no cheiro de cadernos e livros novos, lápis e canetas incomuns era deliciar-me com meu presente.
Inventava histórias que escrevia e escondia no porão da casa, até que um dia meu irmão descobriu. Prometeu, jurou guardar segredo e, talvez, percebendo meu desespero, acredito que tenha cumprido a promessa
A descoberta do meu esconderijo, somada ao medo que eu sentia quando ia sozinha ao porão, transformou a preservação do meu segredo numa missão extenuante.
Passei a guardar os papéis junto com meu material escolar para que ninguém em casa os visse. Chegando ao colégio escondia-os sob o uniforme para que as freiras não encontrassem.
Um dia, ao voltar da escola escondi minhas histórias dentro da fronha do meu travesseiro e só me lembrei delas na manhã seguinte quando peguei o material para fazer a tarefa de casa.
Voltei apressada para o quarto, mas do corredor vi minha mãe com os papéis nas mãos, lendo e, ainda hoje não sei se rindo ou apenas sorrindo.
Também não sei se ela me viu ou não, mas nenhuma das duas tocou no assunto e quando eu fui dormir a roupa de cama havia sido trocada, mas minhas histórias estavam lá.
Agora, adulta, gosto do que vejo quando me olho no espelho e, também, de comprar cadernos, livros e do cheiro inconfundível de papel novo.
O cheiro, os aromas são para mim a mágica máquina do tempo que me leva para aqueles aconchegos, portos seguros que só a meninice é capaz de conhecer plenamente.
Histórias continuo a escrever, e da mesma forma: em segredo, assim como acabei de fazer.
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