Quebrando espelhos e conceitos
O tempo do espelho mudou.
O culto aos espelhos domina a mente, os olhos, e Narciso decerto hoje se assustaria conosco. Exacerbamos. Foi-nos há muito um mito, uma característica forte que se ressaltava. Um ponto que até poderia ser favorável. Era bom ver o belo e admirar a própria beleza não transpunha os padrões da dita normalidade. Se não exagerado, era mais um traço apenas.
Amar-se, cultivar elevada auto-estima, querer-se bem e respeitar-se é positivo. É “in”. Hoje, entretanto nos tornamos mais que isso, somos a sucessão do que o mito Narciso foi em todas as suas vertentes e, compulsivamente, sem freios, não vislumbramos mais limites. A ciência é a nosso favor. Nascemos um, mas podemos ser outro completamente diverso. Distinto em absolutamente tudo que pode ser modificado.
Mudamos o corpo, aperfeiçoamos traços, desenhamos a forma que queremos ter e o bisturi, executa. Qual tecido, molde, tesoura, agulhas, alfinetes, linhas, o homem se reinventa com tecnologias de alta complexidade que recriam um perfil (físico) novo e arrojado e os profissionais de cânulas em riste, fios de sustentação, botulinas e preenchimentos a postos, obstinados, nos trocam. Transformam. Transmutam. Diria mesmo que não somos prisioneiros do espelho, somos consentida e completamente encarcerados pelo culto a beleza, pela perfeição da forma, pelo volume tido como ideal e que cabe num corpo. Feito isso, se somos o “belo exterior” por certo somos também o “must” interior, correto?
E assim transferimos a força da estética para nossa personalidade e agora já não somos somente belos, somos inteligentes, gostosos, sapientes, cultos, sagazes, capazes e tudo de melhor que um ser humano pode ser.
Bom, neste caso já não só nos amamos, como nos adoramos, cultuamos, endeusamos.
E damos vivas ao egocentrismo! Viva o individualismo! Viva exclusivamente “eu”!
Mulheres praticamente “deusas”, homens quase “supremos”. E no mais, no final, quase sempre tão sós. Com uma baita vaga na alma, parênteses no coração. E viva a insatisfação!
E tome depressão. Os fabricantes de antidepressivos e psicotrópicos, penhoradamente agradecem.
Brincadeiras a parte, um passo que pode iniciar um processo digamos “Uma folga para Narciso” é voltarmos o nosso olhar ao lado, ao redor, ver os rostos, os olhos, as pessoas propriamente.
E se levantarmos a cabeça, tirar um pouco o foco do próprio umbigo (leia-se barriga tanquinho e nas meninas acresçam um piercing) e verificar que outros seres maravilhosos também existem?
Uma sugestão: Se apropriar de uma bela cena da natureza, ainda que cotidiana, e observar com outro olhar, enxergar por um ângulo diferente.
Descortinar um pôr-do-sol, olhar as rugas do idoso e nelas verificar o livro imenso de vida que há impresso. Partilhar sorrisos, palavras afáveis, perguntar (de verdade) aos colegas de trabalho, da vida, se está tudo bem. Conhecer melhor o universo que é potencial contido num ser humano. Mais humanidade, menos vaidade.
Trocar experiências, idéias, sair do lugar comum que é ser “eu”, trancafiado em mim, única convivência permitida e considerada sã.
Se for assim: Ousemos. Ser mais louco um pouco? Perceber que existem absurdas, imensas verdades além da minha, da sua própria?
E belo mesmo é tudo. Tudo que nos cerca tudo que vive que exala afeto, tudo que o universo nos proporciona.
De repente (é bom e nem engorda) quebrar algumas regras pessoais, alguns espelhos (isso de falta de sorte é bobagem).
Gente é de maneira geral bonito!
Gente é vida!
É beleza.
Há mais alegria quando guardamos um pouco dos tantos “eus” e tiramos das gavetas, dos armários os “nós”. Não aqueles que atam, mas os Nós pronominais.