O LEITE DAS CRIANÇAS

A minha filha mais velha nasceu através da superação. Aos oito meses e pesando apenas 1kg,250g, tinha em seu código genético um gene chamado superação. O que ela passou de lá para cá confirma minha hipótese de geneticista amador e pai coruja. As outras superações eu conto numa outra oportunidade, talvez em livro, pois dá muitas páginas. Lá no início ela precisou ficar 35 dias internada dentro de uma incubadora tomando apenas leite materno vindo de doações dessas mães que a gente até perde adjetivos para acomodar a sua inaudita bondade.

A mãe dela até que tinha bastante leite mas a menina era tão frágil que não tinha forças para fazer sucção. Ficava numa canseira de dar dó. Então tinha que retirar o leite e colocar numa chuquinha com o furo do bico aumentado a fim de sair maior quantidade. E a mãe tinha que amamentar outras crianças porque a produção não parava e o leite podia empedrar.

Por outro lado, o hospital recolhia doações e a gente mesmo é que buscava nas casas onde tinha mães recentes na cidade de Itabira. Isso foi em 1986. Eu trabalhava em outra cidade e ajudava aos finais de semana. A Dona Tereza, um anjo que se casou com meu pai depois de sua viuvez e a própria mãe dela faziam o trabalho durante a semana.

Foram 35 mães de leite que a minha filha teve. Até que completasse 2 quilos, peso mínimo que os médicos admitiam para liberar a criança para ir para casa e sobreviver sem precisar ser monitorada. Era uma espécie de provação. O acompanhamento era diário. Dias em que ganhava 50 gramas, 90 gramas, dias em que perdias alguns gramas. Um torneio de sobrevivência.

“Valeu a pena, êh,êh! Valeu a pena...”

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Marilda era uma mãe de um menino da mesma idade de minha filha e doava leite para ela. O seu menino perto da minha menina parecia um gigante com seus mais de 4 quilos. Também pudera, a mulher era uma fabricante natural de primeira grandeza. De toda a alegria que me contagiava quando saía buscando os vidrinhos de leite pela casas, na da Marilda era para mim uma festa. Todas as outras foram cruciais, reconheço e agradeço infinitamente. Mas Ela enchia, em menos de meia hora um vidrão de meio litro, sem precisar daquelas bombinhas de sucção dos seios, só nas massagens. Isso, logo depois de seu filho ter terminado a sua mamada. E ainda dizia. “Se você quiser voltar aqui mais tarde, eu posso tirar mais”, com o sorriso mais honesto a satisfeito que faz parte da reserva emocional de uma mãe de duplo amor.

A notícia* que eu li sobre uma mãe que bateu recorde de doação de leite em São Paulo (100 litros de leite materno por mês) não me espanta e com todo respeito e veneração que passo a nutrir pela Gildilene, a protagonista do feito, digo que a Marilda não foi incluída nas estatísticas. Também não se trata de uma injustiça. Taí a minha filha fortíssima e saudável para atestar que a Marilda era mãe de uns 200 litros de leite por mês sem fazer muito esforço.

Numa sociedade onde a competição por futilidades de bundas, peitos e máscaras ganha tanta notoriedade na mídia, até que seria bom se fosse estimulada essa de quem faz mais para salvar vidas.

* http://noticias.bol.uol.com.br/ciencia/2010/10/04/mae-doa-100-litros-de-leite-a-hospital-estadual-e-bate-recorde.jhtm

josé cláudio Cacá
Enviado por josé cláudio Cacá em 20/10/2010
Reeditado em 20/10/2010
Código do texto: T2567294
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