Lício caiu
LÍCIO CAIU
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 20.10.2010)
É muito estranho ver no caixão alguém que participou da tua vida nos últimos 45 anos. Marcelo falou que o principal legado deixado pelo pai foi a importância da lealdade aos amigos. E o Lício sempre foi assim, leal ao absurdo, desde os tempos da Escola de Engenharia Industrial; não foi um truque da sua posterior carreira política. Aliás, ele abraçou a política exatamente por acreditar no ser humano, em especial nas pessoas mais humildes e necessitadas, que ajudava desde a época de faculdade. Julgava que, com um cargo eletivo, poderia fazer mais por elas. Lício foi um humanista radical.
Pessoalmente nunca entendi sua filiação partidária: com filosofia e visão de esquerda, aderiu a um partido de direita - e isto ainda durante a ditadura. Bem verdade que, se tivesse acabado no PMDB, estaria hoje de braços dados com o DEM... O fato é que nunca chegamos a discutir sua opção política, conversa que ficaria, decerto, para uma tarde qualquer depois que ele abandonasse a vida pública.
Em 11 de dezembro passado, durante um jantar na Lindacap, comemorativo aos 40 anos de formatura dos engenheiros mecânicos e eletricistas da UFSC, o Lício foi incisivo: precisamos contar em livro a história dessa turma, ele disse, com depoimentos e revelações de todos os 28 formandos - mas contando suas trajetórias sobre um fundo da História do Brasil, denunciando como o golpe de 1964 e a ditadura militar afetaram nossas vidas e nossas escolhas. Afinal, foi uma turma que integrou a primeira geração a entrar na universidade depois do golpe (em 1965) e a primeira a sair após um ano completo sob o AI-5 (em 1969). Ele pediu um orçamento detalhado, considerando viagens, entrevistas, pesquisas e redação, pois não via problema de conseguir os recursos para a produção do livro.
O plano geral da obra e o projeto de trabalho, esboçados em seguida, nunca chegaram a ser discutidos com ele por desencontros de agendas, agravados com a aproximação da campanha eleitoral de 2010.
No dia 15, sexta-feira, menos de duas semanas depois de eleito para o quinto mandato consecutivo de deputado estadual, o coração do Lício Mauro deixou-o na mão - e a nós no desamparo de um amigo leal, o primeiro dos 28 a cair. Agora, quem sabe, a Carla Anette, o Marcelo, a Andréa ou seus assessores encontrem algum depoimento dele, escrito ou gravado, que possa ressuscitar a esperança do livro.
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"Convém que nos situemos no tempo. As três conferências de [Antonio] Callado para auditórios no exterior foram feitas no apagar das velas da escuridão do governo do general-presidente Emílio Garrastazu Médici - de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974 -, que rolou entre a demencial e crescente violência da tortura, no apogeu dos Doi-Codis, dos sumiços de presos e dos cadáveres, com o silêncio garantido pela censura, estúpida e torva, estimulada pela impunidade e a cobertura fardada."
Villas-Bôas Corrêa na apresentação de "Censura e Outros Problemas dos Escritores Latino-Americanos", de Antonio Callado.
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Amilcar Neves é escritor com sete livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 32 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior.