Escatologia - O Escarro
Acordo, envolto pelos lençóis ainda umedecidos pelo vômito da madrugada, e viro a cara para expelir o escarro que cai no chão, mesclando-se aos outros, em variedade de tons marrons e amarelo-escuros, que se acumulam próximos à cama. O gosto amargo de sangue fresco permanece na minha boca. O espelho no banheiro, que reflete cabelos ralos e sujos, grudados pela seborreia, fica embaçado pelo hálito fétido e gelado que anuncia que os demônios estão presentes, aguardando calmamente para soltar o grito estridente interno. Olho para o espelho e vejo um rosto cansado e endurecido implacavelmente pelo tempo. O assoviar da melodia de “Raindrops keep falling on my head” revela uma arcada dentária irregular, em que predomina a intermitência entre a ausência de dentes e os que são revestidos pelo preto do tártaro.
Vestido com uma sobrecapa escura, que exala o cheiro de mofo e poeira, saio pelas ruas imundas da cidade. Esquivo-me diversas vezes dos excrementos de cães que se aglutinam no chão, quase misturando-se aos globos de cuspe humano que dominam as frestas irregulares das pedras portuguesas da calçada. Avisto uma pichação numa parede que diz "O futuro é a morte" e sorrio para mim mesmo, refletindo sobre a bela e profética frase. Um berro ao lado indica uma briga irrompendo entre os mendigos e um deles, com uma extensa pústula na perna, da qual flui o pus viscoso, desfere um soco no rosto disforme de um colega. Sinto o pigarro dentro de minha garganta e escarro, ruidosa e prazerosamente, todo o bile esverdeado de dentro de meu fígado pútrido. À frente, a multidão se aglomera e acotovela para observar um corpo, coberto por uma grossa capa preta, estendido no chão, mas cujo braço descansa preguiçosamente sobre a calçada. Desvio-me do cadáver e sigo em frente, assoviando, feliz.