Parto sem cria

O calor que vinha de ti era como um braseiro incandescente que amadurecia meu cio. As tuas mãos firmes acariciando-me sempre me dispondo quando querias. Era o teu jeito de amar. Sempre eu soube das tuas andanças, dos teus galanteios, mas fui eu a fêmea escolhida por ti. Era em mim, era aqui que buscavas o teu refúgio. Era o meu cheiro que estava impregnado em teu corpo e que o atraia como um colibri em busca da flor. Tu bem sabias que meu coração não tinha tranca e a porta estava sempre cerrada, era assim que chegavas, sorrateiro, vindo não sei de onde, aninhava-se neste colo macio, depositando aqui o teu cansaço. Amavas-me ternamente e dormias, só ai é que eu podia, enfim, contemplar o teu belo rosto. Havia nele um semblante sisudo e meigo, um menino grande que a vida havia presenteado-me. Na varanda as botas descansavam, num cabide junto à janela estavam a bengala e o chapéu de feltro. O sol nunca foi testemunha da tua fuga, antes mesmo do alvorecer já saíra tomando o teu rumo, sem contudo dizer-me até mais logo, mas também não carecia de avisar, eu bem sabia que a tua saída era ligeira e que jazinho estaria de volta. A cada volta era como se fosse a primeira, o coração batia forte, e uma ansiedade quase consumidora de mim fazia com que eu deixasse os afazeres de lado, até que se ouvia o ruído da porteira se abrindo e o relinchar do cavalo já prevendo que chegara a hora do repouso. Era também o repouso do meu guerreiro, grande na sua robustez, já sem a camisa mostrava um dorso nu, que era um convite ao amor. Mas aquela ainda não era a hora, era o momento da prosa à beira do fogão à lenha, à espera do café fresquinho que era tomado em pequenos goles, com o prazer do pito no cigarro de palha. A conversa era boa, contava-me causos e os acontecimentos do dia. A nossa vida era simples, mas num cotidiano de pura magia, do companheirismo a cumplicidade. Foi assim que nos tornamos um só. Foi só também que fiquei quando foste levado de mim. Foi aí que pude compreender, sem nunca aceitar, que o menino grande não era um presente, era um empréstimo por um tempo certo, e que o tempo havia exaurido, e ele precisava ir pra junto do seu Criador. Ficou comigo um vazio, como um parto sem cria, e minha alma que nunca deixou de sangrar.