Crônicas da nova era - I

Antecedentes

Era no sexto dia quando o criador fez o homem à sua imagem e semelhança: uma criatura capaz de criar, de dar continuidade à obra da criação.

No princípio o homem vagava livre pelas planícies como fazem os animais. Recolhia sua comida nos campos que floresciam abundantemente e aplacava sua fome assim que ela surgia. Era a infância do homem, tempos de liberdade e descompromisso em meio ao amplo jardim, até que veio a queda.

Tendo sido modelado criador, a curiosidade e o engenho do homem logo se manifestaram, pois era esse o seu destino; chegou então a hora de provar do fruto do conhecimento do bem e do mal, era um tempo de aprendizados, dos primeiros plantios, das primeiras construções; mas tendo gerado enorme abundância de alimentos com suas plantações, as bocas se multiplicaram, e o homem se viu refém de sua própria criação, tornado dependente das imensas quantidades produzidas pelo cultivo da terra.

A terra será maldita por causa de tua obra: tu tirarás dela sustento à força de trabalho. Ela te produzirá espinhos e abrolhos: e tu comerás por sustento as ervas da terra. Tu comerás o teu pão no suor do teu rosto até que te tornes terra de que foste formado, porque tu és pó e em pó hás de tornar!

A labuta e o suor passaram então a ser uma constante e acompanharam o homem por toda a sua vida, e ao longo das gerações. Mas ocorreu que algumas crianças não tinham pais, tendo-os perdido em idade muito tenra, e assim, desprotegidos, foram obrigados desde muito cedo a trabalhar como animais para aqueles que lhes alimentavam. Foram os primeiros escravos e suaram por si próprios e por muito outros, e labutaram infindavelmente e sem piedade até tornarem ao pó, enquanto seus escravizadores iam se tornando dependentes desse abuso. Eram os tempos da opressão, da exploração do homem pelo semelhante, que perdurariam por milênios.

E o senhor Deus o pôs fora do paraíso para que cultivasse a terra da qual tinha sido formado. E depois que o deitou fora do paraíso pôs diante desse lugar de delícias um querubim com uma espada cintilante e versátil para guardar a entrada da árvore da vida

Era no sétimo dia, o dia em que o homem se encarregou da criação, e ele labutava de sol a sol para conseguir o pão encharcado de suor. E muitos o faziam sob o jugo do chicote; era o pão suado e sangrento assado pelos escravos, depois chamados eufemisticamente servos e posteriormente empregados. Tinham em comum o fato de pegarem para si apenas uma pequena porção do resultado de seu suor, reservando a maior parte para o feitor que o aguilhoava continuamente.

Deus sabe que tanto que vós comerdes deste fruto, se abrirão vossos olhos; e vós sereis como uns deuses, conhecedores do bem e do mal.

Mas nem tudo eram lágrimas, e a criação prosseguia cândida e bela. Era o início e o desenvolvimento das artes, da invenção da pintura e escultura, da geração das primeiras melodias. E as artes brotavam das mentes ávidas do homem, jorravam dos sonhos desses criadores. Surgiam as belas obras, e novas formas de expressão também vinham à tona. A música ganhou corpo com a soma de melodias sobrepostas e inundou os espaços para o deleite de muitos, embalou danças sensuais iluminadas por coloridos espetaculares. A literatura engendrou os mais ricos sonhos, grafou os mais inquietantes delírios imagináveis, os mais singelos amores jamais sonhados. E todos esses sonhos ganharam forma e movimento em telas imensas.

Eis aqui está feito Adão como um de nós, conhecendo o bem e o mal.

Não só as artes, mas todas as ideias fecundaram, surgiram a filosofia e a ciência, as mais profundas e díspares formas de pensamento. Também proliferaram as tecnologias diversas e seus frutos.

As cidades cresceram e se multiplicaram, abrigando imensas aglomerações que aumentavam a cada dia, e o número dos homens chegou aos bilhões.

Era o alvorecer do oitavo dia, e o homem criou a máquina à sua imagem e semelhança. As primeiras eram toscas, meros utensílios brutos, mas foram utilíssimos na construção de novas ferramentas mais aprimoradas e precisas, necessárias para a criação de máquinas ainda mais elaboradas. E os sucessivos aprimoramentos das máquinas possibilitaram os avanços seguintes até que elas evoluíram e se tornaram autônomas.

E o homem viu que não mais precisaria fazer o pão com o suor do próprio rosto, percebeu que poderia descansar enquanto a máquina labutava por ele e produzia seu pão. Mas muitos haviam se tornado escravizadores e acreditavam ser este o seu destino, escravizavam como se isso fosse a razão de suas existências, e o faziam sem nenhum propósito, como se os outros tivessem nascido para a escravidão.

Então todos os bens necessários à vida de toda a população eram feitos pelas máquinas, e mesmo assim a multidão continuava atrelada aos grilhões, aos mesmos arreios que puxaram penosamente durante gerações, quando a labuta não era vã, e os seus esforços eram úteis. Permaneciam atados à canga, embora já não gerassem mais nenhum fruto de tal infortúnio, como bois que, uma vez libertos da canga, continuam atrelados por grilhão imaginário.

Mas não tardou para que se evidenciasse o absurdo de tal mazela, o paradoxo da escravidão inútil, o sofrimento imposto sem razão, e o homem se viu livre, perdoado finalmente da culpa do pecado original.

Estava liberto o homem, era livre. E aos olhos do homem livre o sol brilhou com mais intensidade, e o homem pode verdadeiramente ser homem, cultivando todas as suas virtudes humanas, elevando as artes a níveis nunca imaginados, erguendo a filosofia e o pensamento a alturas impensáveis, e toda a ciência, toda a compreensão do mundo a graus nunca sonhados. E o homem livre podia finalmente olhar para si próprio, para toda a humanidade, e construir-se a si mesmo cuidadosamente, humanamente.

Eram os tempos do homem, tempos em que liberto de toda a opressão, podia empenhar todo o seu engenho em seu próprio aprimoramento, no aperfeiçoamento da própria humanidade, de todas as suas artes e ciências.

Floresceram também os jogos, uma infinidade deles, pois eram grande paixão da humanidade, e as maravilhosas obras descomunais que afinal, e ao lado de tanta grandeza, evidenciavam o homem, esse gigante recém liberto, em sua verdadeira e minúscula dimensão.

O oitavo dia já findava quando o homem construía, à sua imagem e semelhança, a primeira máquina verdadeiramente autônoma capaz de se encarregar da criação do mundo. E o homem então descansou e contemplou sua obra, e viu que tudo isso era bom.