Pão com banha
O encontro semanal ocorreu na véspera do nosso dia, Dia dos Professores e Professoras, as amigas de sempre sentaram-se à mesa e, entre os pratos do jantar, acrescentando ao paladar um sabor quase nostálgico, um tempero especial, saudades... Sem combinação alguma, uma conversa enrosca-se à outra e, uma a uma vai relembrando o início profissional, os arroubos dos tempos universitários e as dificuldades do início da vida escolar. Histórias engraçadas com professores e colegas de escola sempre deixam marcas. As travessuras, as colas, os namoricos, assim como as diferenças sociais que na infância nos legaram costumes bem diferentes...
Uma gama de sentimentos vieram à tona e, o jantar simples entre amigas para revelação de amiga secreta, acaba revelando outras situações, também quase secretas... a menina que envergonhava-se por morar na periferia, numa rua barrenta, numa casa sem cor e, que crescera comendo pão com banha... ah, hoje a gente ri, acha graça dessas coisas tão simples e rotineiras em nossa infância, apesar de totalmente estranhas ao mundo e ao paladar de outras amigas. Vindas de universos diferentes, coisas habituais para crianças da periferia, para colegas nascidas em outras condições, causa espanto, surpresa e curiosidade. Assim, as horas passando e, a conversa correndo às soltas, enfim fez-se necessário esclarecer as dúvidas e, quem conta um conto, aumenta um ponto ou muitos... Ah, isso foi tão bom, junto vieram tantas recordações... Por via das dúvidas, caso alguém desconheça o tal gênero alimentício 'pão com banha', não se constranja, esclareço.
Minha família de origem muito pobre, assim como tantas outras, contava quase como um privilégio ter um chiqueiro no fundo do quintal para engordar um porquinho e alimentar a prole. O dia do sacrifício do animal, geralmente aos sábados, era dia de festa para a criançada, enfim, saía-se da velha rotina e logo ao nascer do Sol, percebia-se o movimento diferente dos adultos. E, para alegria de muitos e infelicidade do bichinho, nesse dia o pobre partiria dessa, literalmente, para a melhor... a melhor carne, a melhor linguiça, a melhor refeição. Era costume na época, reunir os vizinhos mais próximos para realizar a carneança. Conforme ía o engorde dos porcos, fazia-se o rodízio pelos vizinhos e, no final dos trabalhos, cada um voltava para sua casa levando consigo uma parte do animal, ainda que fosse para uma única refeição. Tanto era vivenciado tal hábito, que até um dito popular originou-se a respeito, e assim, ao agradecer qualquer tipo de favor, era comum após dizer-se obrigada a alguém, ouvir-se como resposta: _ De nada! Quando matar porco me dê o rabo! (dispensa-se malícia)!
Lembro-me com saudades algumas coisas daquelas manhãs, outras nem tanto... Papai acordava cedo, acendia um fogo em meio ao pátio de chão batido e, punha um enorme tacho de água para ferver, até que os vizinhos fossem chegando. Aos homens geralmente, cabiam trabalhos específicos como, ‘o crime’ de sangrar o animal que urrava até a morte (essa parte eu abominava, escondia-me, para em vão, tentar não ouvir), a raspagem dos pêlos, o esquartejamento da vítima e, o cozimento da gordura que se transformaria em banha (ah, eu gostava mesmo era das sobras da prensa, os saborosos torresminhos). Por sua vez às mulheres, juntamente com mamãe, cabia uma parte terrível, lavar os intestinos do animal que mais tarde se transformariam em deliciosas linguiças... Lembro-me, descíamos até o riacho mais próximo, para fazer a tal lida, no retorno seria necessário ainda passar por outros processos de limpeza, como fervura com limões e etc, até por fim encher as ditas tripas com a carne moída, temperada, amarrando as linguiças... estavam prontas para irem para a panela... ah, uma delícia (essa parte eu também gostava, apesar de acordar no dia seguinte com uma violenta alergia capaz de empolar minha pele todinha...)!
Quase poderia assumir esses afazeres penso, tão bem memorizei os passos dessa lida... ah, mas por hora, prefiro apenas relembrar os sabores de minha saudosa infância... Voltando à dita gordura animal de origem suína, que para nós tratava-se simplesmente de banha de porco, a qual além de servir para o preparo das refeições, à tarde também acompanhava nosso lanche. Afinal, criança pobre também lancha... e, sem opções de quaisquer guloseimas tão acessíveis hoje em dia (apesar de questionáveis quanto a suas consequências à saúde), nosso ‘tira gosto’ ou melhor, ‘mata fome’ mesmo, era pão, pura e simplesmente pão. Quando então, havia banha fresquinha o lanche era especial... uma espessa camada de banha servida sobre o pão, polvilhada com açúcar cristal (bem grosso de preferência, para fazer barulho nos dentes) ah, agradável cobertura sobre generosas fatias de pão caseiro que mamãe caprichosamente, fazia... (ainda faz) e, nos deixava com uma aparência de crianças saudáveis, robustas e bem alimentadas, ludibriando nossas demais condições...