Uma página em branco…(continuação) Ou o Prazer de uma boa mesa
Uma página em branco…(continuação)
E lá estava ela hoje outra vez a olhar para mim…de uma forma sedutora, mas também irritante…O convite era insufismavelmente sedutor, mas irritou-me esta espécie de dependência momentânea de algo, eu que tirando uns cigarritos até não sou adepto de qualquer tipo de vícios, sejam eles físicos ou mentais…Mas será um vicio olhar dois dias seguidos para uma folha em branco e sentir que de facto há uma necessidade premente de a preencher com mais algo de mim para uma audiência incógnita que desconheço como irá receber estas espécies de crónicas…?
E estas linhas começam ao mesmo tempo há uma pequena eternidade e há poucos dias, pois há poucos dias li na Revista de um novo Semanário português uma entrevista com o meu mestre maior literário vivo (Luís Sepúlveda) em que à paginas tantas de imensas e belas palavras ele dizia na sua casa do norte de Espanha para onde foi viver refugiado do cruel regime Chileno do algoz Pinoche que quando construíra a casa lhe tinham sobrado algumas tábuas, a que deu um uso pragmático: mandar fazer delas uma enorme mesa onde se poderiam sentar até 24 pessoas, para a partilha da dita mesa em churrascos ou outros petiscos para os amigos que por lá passavam. Mais, ele cultiva esse ritual da mesa entre camaradas, entre amigos, entre irmãos por onde quer que passe e se sinta amado, sinta que além das palavras há comida a partilhar, há um ritual de solidariedade que começa e acaba na boca, pois da boca saem as palavras que criam laços que nos levam à comida, e estes, por seu turno reforçam esses lados com o gesto simples mas perene da partilha.
Eu sorri ao ler estas linhas, e por uma vez senti-me perto do meu Mestre: venho de uma família tradicional, que desde a infância que cultiva a partilha à mesa, em refeições ao Domingo na casa dos meus avós em que juntávamos a família mais próxima e que partilhávamos a refeição e sentires; novamente a partilha…E este ritual começou a estender-se logo na idade da escola para além da família, levando eu a minha casa esses primeiros amigos que nos deliciávamos todos com os pratos da minha mãe, excelente cozinheira e anfitriã de primeira água. Mas desde cedo que eu não levava qualquer pessoa a casa, dado ser reservado, só levava com quem sentia alguma afinidade especial, alguém que partilhasse algo de único comigo.
Fui crescendo, perdi os amigos, mudei de casa e criei novos amigos, mas durante anos o ritual ficou esquecido, à espera que os laços se tornassem em qualquer coisa de palpável, de objectivo, nada de coisas vãs, pois apesar de ter muitos conhecidos e amores vãos, eu prefiro os mais duradouros, ora para isso são precisos anos para talhar esses sentires, para lhes dar uma forma mais ou menos eterna…
Os almoços de família ao domingo continuaram e a família foi reforçando a sua união indestrutível, mas os outros…ficaram suspensos…
E a próxima recordação à mesa vai para a véspera da minha incorporação forçada no exército português. Algum tempo antes tinha-me apaixonado perdidamente por uma bela amiga, e a coisa foi tão intensa que nos aborrecemos durante 6 meses, até que um telefonema fez as pazes e o convite para um jantar a dois só nos veio aproximar ainda mais; a família estava de férias, e como eu entretanto aprendera a cozinhar (e modéstia à parte não sou nada mau nesta arte…) fiz-lhe um relato do menu de tal ordem irresistível que pela atracção da companhia e da boa comida, ela veio e passámos excelentes momentos juntos, à mesa reforçámos laços que a tropa acabou pela distancia insuportável entre nós, mas que tornou a nossa amizade numa das mais belas que tenho, pois apesar dela ter entretanto mudado de cidade e casado, ainda hoje nos visitamos e eu criei o belo hábito de passar por ano alguns dias na companhia da sua bela família.
Os anos passaram, houve várias refeições pelo meio mas sem a magia das anteriores, os novos amigos tornaram-se em velhos conhecidos, a família abanou com a morte do Patriarca, mas as coisas continuaram mais ao menos as mesmas, fui crescendo, mas em perder esse habito da partilha à mesa.
E a próxima mesa cheia aconteceu quando estava mais ao menos a meio do curso. A fama da minha mãe como cozinheira e anfitriã generosas tinha-se tornado num mito vivo e as refeições lá em casa eram disputadas a meio de uma noite de copos como o próximo grande acontecimento, ultrapassando em termos comparativos todos os jantares de curso e festas académicas.
E nessa noite, numa noite de Março a meio dos anos 90, o jantar começou com o meu Padrinho e o seu enorme apetite por conversa e apetites à mesa. De repente o telefone tocou e um amigo que me perguntava como estava foi o próximo conviva…O telefone tocou mais algumas vezes e de repente lá estava o Padrinho (estudante de Direito e hoje um excelente advogado) o Nuno (estudante de Geografia e hoje um professor dedicado com o carisma dos velhos mestres que se começam a reformar), o Ferran (estudante de artes e hoje um reputado designer gráfico), o meu irmão, o Rodrigo (estudante de economia e hoje assistente na sua Faculdade), o André e o Cascão (os dois estudantes de direito, um assistente na actualidade e o outro nómada do direito pela Europa fora).
Foi uma noite magnifica em que o lombo de porco e o arroz de ervilhas regado a bom vinho e excelente cerveja criaram uma união que pensávamos para sempre, e que nessa noite foi para sempre pois prolongámos o convívio por essa noite fora, bebendo, cantando, gritando, dançando, reforçámos a eternidade.
Que se perdeu, pois aquele foi o nosso maior, mas também último jantar. Continuo amigo de quase todos, mas com o fim dos cursos e algumas animosidades sóbrias os laços desfizeram-se numa despedida que nunca foi dada, mas que se efectivou quando aquela mesa ficou vazia do grupo para sempre…
Por estranho que pareça as namoradas não foram convidadas, não por falta de espaço, mas porque eram demasiado vãs para aquele espaço…Hoje todos estão estabilizados a nível de afectos e a nível profissional, mas a mesa lá está, vazia…
Como que a prolongar a boa mesa, pouco depois do jantar comecei a celebrar os meus anos à volta de uma mesa, com elementos do grupo desfeito, mas nunca mais com os mesmos, e ainda hoje conservo o hábito de convidar pessoas para os meus anos, fora de casa, pois a intimidade perdeu-se daquela forma única, onde mais do que festejar a data se festeja o facto de sermos amigos. Todos os anos saem e entram pessoas desse jantar, mas o hábito lá continua…
A última vez que tive um jantar desses foi no início do verão, quando fui convidado para uma refeição por uma amiga de alma numa cidade perto daqui. Tu não sabes disso, Borboletita, mas esse jantar fez-me recordar tempos antigos e eu senti-me um privilegiado por me teres convidado, devolveste-me uma bela magia que espero não se ter perdido, um afecto que apesar de mal conhecer os restantes convivas me fez sentir como alguém perto, amado, acarinhado, talvez porque nessa noite o tenha sido de facto.
Continuo a ter jantares fora de casa, pois a casa está reservada para futuros afectos grupais, os meus amigos continuam a ir lá quando podem, mas sós, continuo a levar lá pessoas individualmente quando as sinto perto de mim, pois quando são apenas como um vento passageiro, convida-se para comer num qualquer restaurante, e o resto, são “trovas do vento que passa que o vento levou”…
Comer é viver, é recriar a eternidade, a vontade de crer perto de nós pessoas que esse tempo poderá afastar, mas que por breves momentos foram nossas na estrada para infinito.
Ou como diria Luís Sepúlveda “Na grande fraternidade dos homens livres nunca se está sozinho”, e isso meus amigos e amigas passa muito por uma mesa, farta, farta de afectos, de palavras, de gestos ternos, de olhares belos, da carestia de uma companhia que escasseia cada vez mais…
Sendo que esta página vazia teve hoje um cheirinho de coisas antigas, um toque Pantagruel a fazer lembrar tempos antigos que não sei se para sempre estão mortos, ou se foram suspensos, porque afinal, quem pode adivinhar o futuro…?