A decolagem

Machado deixou bem claro o triste fim de Policarpo Quaresma, mas Metacarpo, um amigo meu, tem meta até no nome e, portanto, fazer planos antes de agir é um hábito arraigado à sua personalidade, algo inseparável, uma espécie de sinônimo da sua presença no mundo. Impulsivo é o tipo de coisa que ele não é. Foi, concordo, mas apenas em uns poucos momentos de sua juventude. Essas coisas de hormônios, sabe, difíceis de se livrar, quando uma seringa chamada adolecência os injeta no sangue da gente a ponto de não se saber qual é qual. Sangue ou hormônio? Nutrição ou estimulo? Manutenção ou risco? Mas, como disse, poucas vezes ele se viu nesses dilemas. Eles se deram apenas lá atrás, em sua época de moleque. Hoje, Metacarpo é camarada ajuizado, sabe o que faz. Outro dia, por exemplo, levou uma cantada daquelas, lá na loja de calçados. A garota era um avião e estava decidida a pousar no aeroporto dele. Ele fechou o tempo com a menina de tal modo, que nem só com a leitura dos instrumentos ela conseguiria aquela manobra. Frustrada, recolheu todas as suas voluptuosas curvas a algum hangar imaginário. Aliás, falando nisso, hangares, o dele era indispensável. Não tirava seu avião de lá por qualquer motivo, senão por aqueles com uma rota segura nessas questões de destino, gasto de combustível e conhecimento razoável de escalas, devidamente anotadas, pensadas e analisadas em resmas e resmas de papéis. Mas, verdade seja dita, algumas rotas que a vida, de vez em quando, lhe oferecia, eram assim como filmes já vistos e, de velho, com final já conhecido. Mulheres bonitas e um tanto quanto oferecidas era uma dessas rotas. Digamos que, metaforicamente, seu último voo numa missão como essa, lhe rendeu algumas perdas e consequentes danos que, com um pouco de visão, estudo de área e tudo mais, poderiam ser evitadas. Mas, todos sabemos, quem não arrisca não petisca. Metacarpo estava careca de saber disso e, vez por outra, até se arriscava, mas com a maior margem de bom senso possível. Considerava todas variáveis, esperadas ou não, antes de acionar o motor. Porém, quando o fazia, fazia de fato. Ah, fazia mesmo e pra valer. Dava gosto de ver sua determinação. Era coisa de gente que sabia o que estava fazendo. Penso que, nesses momentos, ele e o que fazia, se tornavam uma coisa só. Algum filósofo disse, um dia, que o homem não é aquilo que pensa, mas aquilo que faz. Metacarpo é assim, o que faz, mas, claro, quando faz. Nas suas folhas de papel, rascunha de tal forma a ação antes de praticá-la, que é como se já a tivesse feito, antes mesmo de fazê-la. Vale dizer que, conforme diz a música, não sente um gosto de usado naquilo que nunca tocou, pois se não tocou, é porque achou que não valia a pena. Sendo assim, deleta a idéia e pronto e não se fala mais nisso. Quanto a tocar, no entanto, quando o faz, é de mão cheia. Assim foi com a Marisa, com a Sônia, com a Joice, com a Cristina, com a Cássia, com a Eliane, com a Elisabeth, com a Kelly e......bem, algumas outras. Não pensa mais nelas, embora tivesse dado tudo de si na relação. Uma de cada vez, claro, pois tem alergia à poligamia, costuma achá-la promíscua. Em cada começo, de cada namoro, pensa em tudo e mais um pouco, antes de começá-los. O irônico nisso tudo é o fato dele sempre achar que todas, cada uma a seu tempo, fosse a definitiva, aquela tão procurada. E eu, meio que acompanhando a distância, acho que me iludia junto, dizendo a mim mesmo: é, agora o Meta acertou em cheio, finalmente fará um voo seguro. Que nada, resolvi me desligar do assunto, pois se nem ele, tão meticuloso, consegue sossegar sua busca, quem sou eu pra dar palpite. Talvez esqueça sempre de considerar alguma variável. Eu duvido, mas talvez seja algo assim. Rapaz bonito, simpático, sadio, e.......ainda só. Será que esse tipo de coisa, relacionamento com o sexo oposto, não deva ser organizado na nossa cabeça antes? Será que, no caso de alguma atração, devamos deixar simplesmente acontecer, no estilo vem fácil/ vai fácil? Mas isso é muito volátil pro estilo do Meta. Não teria nada a ver com ele. No entanto, independentemente do que todos pensem sobre o assunto, eu gostaria de, humildemente, comentar apenas um ponto. Quando ele se dá pra alguém, com aquela cara de devoto, como se a mulher fosse a única no mundo, confesso que ela deva, ao menos por um tempo, se sentir assim. Olha, gente, é coisa bonita de se ver. Não é melado nem piegas, mas simplesmente convicto e consistente, fiel e dedicado. Mas elas se vão, mais cedo ou mais tarde, acabam indo. Não há de ser nada, pois ele não desiste e logo logo vai tirar, de novo, seu avião do hangar para mais uma dessas rotas supostamente seguras e mentalizadas. Isso sim, é bonito demais de se ver. Ele pegando a cabeceira da pista, daquele jeito alegre, seguro, cheio de papéis no bolso, com todas suas esperanças rascunhadas neles, como se fossem provas do justo e calculado motivo daquela decolagem. E são, vale dizer. E são, devo dizer. E são, assim, quero crer.

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 15/10/2010
Reeditado em 05/11/2010
Código do texto: T2559070