O Inferno de Dante II ou A Epopéia da Entrega de um Pacote no CAPE

O Inferno de Dante II

ou

A Epopéia da Entrega de um Pacote no CAPE*

Gritam meu nome. Está na hora de levar a dirigente para sua casa. Desço as escadarias pulando, de dois em dois, degraus que me levam ao térreo. Já passava das cinco da tarde. Ida e volta levaria uma hora. Retornaria as seis, hora em que normalmente sairia. Gritam novamente meu nome. A dirigente deve estar com pressa. Mas não. Era para aguardar que estavam fazendo uma relação de remessa de um pacote que deveria levar para a capital; para onde eu me dirigiria a fim de retirar os cartazes destinados à reunião que seria levada a efeito, por mim, no dia seguinte. Aguardo. O relógio, inclementemente, avança seus ponteiros. “Vai atrasar”, pensei. Gritam novamente meu nome. Prenúncio de uma desgraça que viria a me atingir!? Subi os degraus que levam ao segundo andar. Encontrei os que me chamavam. “O computador não coloca a data atual”, reclamaram. “A droga do programa está protegido e não aceita colocar a data atual”. Examinei o relógio interno do microcomputador e percebi que ele estava atrasado mais de seis meses. Tão atrasado quanto a pessoa que queria fazer a relação de remessa. Acertei a data e ele funcionou normalmente. Peguei o pacote, a relação de remessa. Levei a dirigente até sua casa, retornei a São Joaquim da Barra. Em minha casa, após o banho, tentei relaxar, mas lembrei-me do pacote. Daquele pacote. Triste pacote. Triste fado. Que sina a minha. Levantei-me do sofá, fui à minha biblioteca e pesquisei no Guia de São Paulo a localização da malfadada rua. Estudei a rota do ônibus. Várias me levariam lá. Trajetos quilométricos e tortuosos pelas ruas da cidade. Conferi no mapa. Nove quilômetros de distância – em linha reta. Algo me dizia que esta viagem seria conturbada. Alguma coisa não iria dar certo. Tinha tudo para não dar certo e, com certeza, não daria. Anotei três trajetos que me pareceram os mais fáceis. Fáceis? A lista de ruas – caminho do circular – era enorme para qualquer um dos trajetos.

À meia-noite, em ponto, o ônibus interestadual aportou na rodoviária. Entrei. Meu lugar estava ocupado pela bagagem de uma senhora que carregava uma criança no colo. Dirigi-me a outro assento, mas por pouco tempo. O “dono” da poltrona logo apareceu. Pedi licença à senhora pelo incômodo e assentei-me, espremido, no lugar que me era reservado. Nunca tive o prazer de me sentar ao lado de uma voluptuosa loiraça. Nem de uma morenaça. Sempre ao lado de... deixa pra lá. Noite insana. A criança, quando não chorava, impedindo meu sono, chutava-me ao tentar se acomodar no colo da mãe. Por diversas vezes a descuidada mãe deixou cair a mamadeira sobre mim, sujando minha roupa. Queria acreditar que aquilo não ocorria comigo. Que eu não estava ali.

Chegando a São Paulo, benzi-me e disse em voz alta “Agora minha sorte vai mudar”. Otimismo besta. Subi as escadas rolantes pressionado pelos que chegavam de todas as partes. Ao chegar à bilheteria do metrô percebi, dolorosamente, que minha sorte não havia mudado. A fila estava enorme. Resignadamente aguardei minha vez. Comprei meu bilhete e dirigi-me à estação Ana Rosa, ponto de partida do ônibus por mim escolhido. Lá chegando, procurei pelas placas indicativas dos pontos dos ônibus. “Linha 765C”, “linha 778H”, “linha 1242”, “linha 417K”; “chiiii!” menos a minha. Menos a linha que eu procurava. Em todos os pontos, filas e mais filas. Perguntei a um motorista onde pegaria o ônibus 4212 que passava pela rua Pensilvânia, no Brooklin. Laconicamente ele respondeu “Faz seis anos que ela foi desativada”. “Estou no sal”, disse, lembrando-me de meus alunos pegos de surpresa em uma chamada oral. Com um sorriso sarcástico nos lábios o motorista me indicou um ônibus que passaria perto. “Aquele com a maior fila e o menor ônibus”. Desanimadamente dirigi-me à enorme fila. Conformado, entrei no microônibus. Tudo era micro. Corredor estreitíssimo, poltronas superpequenas. Mal cabia uma bunda. Sentei-me ao lado de um senhor com quase dois metros de altura e outros tantos de largura. Pelos documentos que carregava, presumi que era advogado. Coloquei, sobre meu colo, meu carrinho de transportar malas e outras coisas e, minha pasta. Sacolejando, o coletivo iniciou sua epopéia. Vascolejava de um lado para outro. O motorista acelerava e freava bruscamente “para acertar a carga” dizia ele. Numa dessa, a roda de meu carrinho tocou a impecável calça de meu colega de banco que olhou furiosamente para mim. Fiquei vermelho de vergonha; balbuciei um inaudível pedido de desculpas. Mais outro balanço e, novamente, a roda tocou a roupa do advogado. Novo pedido de desculpas e desta vez, veio a resposta: “desculpas não lavam roupas”! Não havia outro banco para mim e nem espaço no corredor. O que fazer? Permaneci sentado. Só me restava apanhar ou ser processado pelo brutamontes. Ou as duas coisas. E, à medida que percorria as ruas, o microônibus foi se enchendo; enchendo. Só faltava, nessa história, que uma mulher gorda entrasse e caísse no meu colo. Fatalidade total. Aconteceu. Ela entrou numa das paradas e num desses vai-não-vai, caiu sobre mim. Eu parecia uma sardinha amassada. Amassado estava também aquele local em que mamãe, com todo carinho, passou talco. Lembrava-me dos responsáveis pelo meu martírio e não desejava coisa boa para eles. Praguejava dizendo “que suas mães eram santas, mas elas...”.

Após hora e meia de solavancos, finalmente cheguei ao meu ponto de parada conforme recomendado pelo motorista que, a todo instante, após freadas bruscas exclamava: “Saravá, irmão!” E, o cobrador, com um sorriso matreiro, respondia: “Percisa lavá não!” – e ria despudoradamente. Desci no ponto recomendado após passar a vergonha de não saber onde ficava a “cordinha” de parada. Como ninguém me conhecia e sabia que, com exceção do advogado, ninguém iria lembrar-se de mim, gritei: “Pare que eu quero descer”. E, o ônibus não parava. Uma velhinha, vendo minha situação, apontou para um botão existente nos apoios de mãos; onde aqueles passageiros que iam em pé se apoiavam para não cair. Era só apertar ali... Modernidade demais para um caipira. Desci. Agora, era só andar 3 quadras para a esquerda, dobrar à esquerda novamente, andar quase um quilometro e chegar ao CAPE. Beleza. Foi fácil. Ao entregar a preciosa encomenda a recepcionista disse: “Por que vocês não mandaram pelo correio? É como todos estão fazendo”. Entendi! “Como os espertos estão fazendo”! “Oh! maldição! Oh! dia! Dia de cão!”

Após a vitoriosa entrega peguei outro ônibus para a República, a fim de fazer aquilo a que minha viagem se propunha. Retirar os cartazes na Secretaria da Educação. Novos solavancos. Novas freadas bruscas. Ida e volta, 3 horas e meia dentro de um ônibus urbano. Ninguém merece!

Cheguei à Praça da República. Eram quase 10 horas e ainda não havia tomado o café da manhã. Fui ao primeiro boteco que vi. Fiquei 15 minutos no balcão solicitando a presença de um atendente. Não fui atendido. Dirigi-me a outro bar. Pedi um pingado e um filão na chapa. O leite veio. O pão não! Reclamei. O barmen gritou “solta um pão na chapa!” Por três vezes. Meu leite esfriou; meu pão não veio. Reclamei novamente. Novo pedido: “solta um pão na chapa!” E nada. Irritado despejei o leite sobre os talheres limpos, açucareiros, porta-canudos, porta-guardanapos que estavam sobre o balcão. Dei o maior escândalo e saí antes que alguém chamasse a polícia. E saí com fome.

Pensa você que acabou meu martírio? Engano. Na Secretaria, o rapaz que ajudava a carregar o carinho com os cartazes deixou escapar o cabo que bateu violentamente minha cabeça causando um enorme galo e uma dor incomensurável. Pode acreditar. Não era meu dia.

E ainda não acabou. Na rodoviária, antes de entrar no ônibus, o motorista, ao ver o carimbo “REQUISIÇÃO” em meu bilhete de passagem, inquiriu-me se era professor ou aluno. Queria ver minha carteirinha. Carteirinha? E eu lá tinha carteirinha!? Ele que abrisse minha bagagem se quisesse conferir.

E não acabou mesmo. Dentro do ônibus meu telefone celular toca. Era um telefonema da diretoria de ensino. Perguntavam se eu não poderia descer do ônibus pegar uma carona de volta e retirar o material da Escola da Família na FDE. Não agüentei. Assustei todos os que estavam no ônibus quando disse: “Vão todos à p.....

CAPE - Centro de Apoio Pedagógico Especializado - Órgão da Secretaria de Estado da Educação.