Test-Drive.
Recentemente precisei deixar meu carro na concessionária para uma revisão, o serviço se estendeu além do previsto e o custo também é claro. Entretanto, para amenizar um pouco a minha situação emprestaram-me um carro, modelo novo, recém chegado às lojas, porém ainda indisponível para entrega imediata. Resultado! lá estava eu circulando pelas ruas com um veículo exclusivo, o que obviamente chamava muita atenção aos olhos dos transeuntes e dos motoristas. Foi uma experiência interessante, me senti envergonhado e vaidoso ao mesmo tempo. Fiquei espantado como as pessoas são fascinadas por carros, alguns motoristas chegaram a cometer pequenas infrações exclusivamente para observar o carro.
Na porta das lojas, nos postos de gasolina, nas ruas e nas calçadas, muitos olhos se fixaram no tal modelo de veículo. O motorista, que neste caso era eu, não tinha importância alguma, um comportamento típico da sociedade atual que está mais voltada ao material que ao humano. Um comportamento que parecia ir além da curiosidade, do inusitado. Com todas as pessoas com quem falei, nos diversos lugares por onde andei, percebi claras manifestações do desejo materialista e em alguns casos até mesmo inveja e muita frustração. Confesso que pude sentir aquela energia desqualificada sendo direcionado pra mim o tempo todo, eu até tentava me apressar em dizer que o carro não era meu, mas.
Dois dias depois devolvi o carro sentindo-me aliviado, mas um pouco triste por ter que abandonar aquele conforto todo, contudo, mais uma vez pude confirmar que o ser humano se acostuma fácil ao conforto, inclusive eu. Além de alguns traços de vaidade que já estavam querendo instalar-se percebi que ainda sou facilmente contaminado por falsos valores. Foi uma experiência importante para compreender melhor o comportamento dos viciados em vaidade, àquelas pessoas que tudo fazem para chamar a atenção. São os que geralmente adquirem inúmeras posses materiais, somente para serem notados.
Ao entregar o carro, não pude deixar de perguntar o destino do carro após o término do período de teste drive, afinal, inúmeras pessoas ainda experimentariam aquele carro. O vendedor prontamente respondeu que o carro seria repassado por um valor abaixo da tabela para um dos funcionários da concessionária que estivesse interessado ou para alguma loja de veículos usados. Explicou que seria muito difícil vender esse carro pelo preço de mercado, justamente por ter sido um caro de teste drive. E pra concluir ainda brincou, dizendo que “esse carro é como aquelas jovens que ficam com vários rapazes e que depois ninguém mais quer pra namorar a sério”.
Fiquei duplamente chocado, primeiro pela comparação insólita e até mesmo vulgar e depois pela declaração machista, pois mal sabe ele que jovens “galinha” são desprezados tanto pelos rapazes quanto pelas moças. Esse é outro comportamento comum na sociedade atual, surpreendente para os mais velhos, mas natural para a maioria dos jovens. Penso que uma das razões deste comportamento seja a elevada carência efetiva dos jovens de hoje advinda dos mais diversos fatores. A ausência dos pais envolvidos em conseguir dar-lhes o sustento e tantas outras necessidades modernas, a precocidade intelectual e tecnológica disponível nos tempos atuais, entre tantas outras razões de cunho social, econômico e psicológico.
As carências afetivas não podem ser supridas através de relacionamentos fugazes e superficiais, tampouco confundir desejos instintivos e fragilidades emocionais com sentimentos reais. É muito frequente confundir desejo físico com amor, isto é, uma demanda do instinto que proporciona uma sensação fugaz de prazer com um sentimento que é algo muito mais consistente. A busca da satisfação afetiva através da satisfação dos instintos e sensações pode tornar-se um vício porque satisfaz momentaneamente. Como em todo o vício a satisfação é cada vez menor, necessita ser alimentado com uma frequencia cada vez maior sem, no entanto suprir verdadeiramente a real necessidade, provocando ainda mais a carência. É o mesmo que ocorre com os viciados em drogas que necessitam constantemente aumentar a dose e a freqüência para obter a mesma satisfação inicial.
Confundir prazer com satisfação afetiva é outro erro frequente, porém mais grave ainda é juntar prazer e carência como se fosse amor. Quando na verdade o amor é um sentimento que deve ser primeiramente identificado e fortalecido no próprio interior. Enquanto a carência afetiva nasce da falta de um afeto qualificado, seja consigo mesmo ou na relação com outra pessoa.
Não se suprime a carência sem um relacionamento afetivo profundo por mais intenso que seja o prazer, por mais aflorado que seja o desejo, tudo será apenas um paliativo que precisa ser constantemente renovado. Como um carro de teste drive que é sempre desejado por ser uma novidade, mas logo se torna comum e obsoleto. Serve apenas para alavancar as vendas, mas em seguida perde os encantos e ninguém mais quer, desvaloriza tanto a ponto de só ser vendido por um preço abaixo do valor de mercado. Boa semana.