Uma vida em um dia

Há tanto tempo , que as coisas que outrora pensei em te dizer de tão desnecessárias foram substituídas por instantes somente desta vida...

Uma vida em um dia

Que bom, céu azul, nenhum sinal de chuva a vista e um longo dia de andanças pela frente.

Estou engajado num novo trabalho, vejo e falo com pessoas desconhecidas (para mim), todos os dias há mais ou menos três meses, e o que eu faço? Simplesmente as escuto, ou melhor, escuto e aprendo. Nunca imaginei que fosse encontrar fora das salas de aula, internet, livros e afins tão vasto conhecimento.

Deve ser porque tudo que tenho aprendido vai muito além de doutrinas, de imposições societárias, são sim fruto reiteradas experiências humanas no sentido mais lato que se possa utilizar.

Hoje, há mais ou menos doze horas, tive uma revisão em alguns minutos de toda minha vida, o que equivale a uns vinte e três anos completos. Quem me propiciou esse flash back foi uma mulher, seu nome é Anita, deve ter por volta de uns quarenta anos, mas não a quem a reconheça de tal forma, não aparenta menos de sessenta, negra, mais ou menos um metro e sessenta, magra, não muito bem cuidada esteticamente, sem um só dente na boca, usava um brinco, bijuteria com uma pedra rosa, olhos profundos, desses que parecem que vão engolindo sua alma se passa tempo demais olhando-os, meio despenteada e com uma vassoura nas mãos.

Sinto que interrompi seu trabalho, mas aquela senhora mostrou-se tão solicita, que me senti extremamente a vontade para continuar a minha empreitada. A princípio não tinha ido me encontrar com ela, meu objetivo era encontrar outras pessoas, uma família, dessas de classe média, de formação bem século XXI, pai, mãe e um filho, que moram respectivamente num bairro desses classe média e que não costumam passar feriadões à espera de um estudante “empreendedor”. É verdade, havia esquecido de dizer que era véspera de doze de outubro, mais conhecido como dia das crianças, e para a sorte de muita gente caiu em uma segunda feira, ainda estamos na sexta-feira e a cidade já está praticamente “vazia”.

E ainda assim, não parecendo muito se importar em que dia era, de que feriado se tratava, ou mesmo se este século é mesmo o XXI, lá estava ela, varrendo a escadaria do segundo andar do prédio. Demorei a perceber que havia alguém trabalhando ali, estava ainda na porta, tentando frustradamente contatar algum morador, tocando o interfone . Depois de alguns minutos parado no portão, derretendo dentro daquela blusa preta e aquele jeans impiedoso (sabia que não deveria ter saído com aquela roupa), já pensava em ir embora e me render a imensa vontade que sentia de voltar para casa, ainda que não tivesse pensado em nada para fazer , a não ser nas mesmas obrigações que já me esperavam como de costume, a roupa para ser lavada, o quarto para ser arrumado, e acredite arrumar aquele quarto é um exercício que exige demasiada paciência, é quase uma e meditação (ou será irritação?), lavar os pratos e só depois pensar em praticar o ócio, isso tudo obviamente só viria depois de ir à aula, mero detalhe. A curtos e despretensiosos passos dirigiu-se até mim aquela senhora, me olhou, riu e encostou-se no portão como se estivesse a minha espera, em nenhum momento largou a vassoura, obviamente me apresentei, usei de alguma cordialidade e logo procurei saber se não encontraria a família que eu procurava naquele momento.

Dona Anita, como quem não tinha dado muita importância ao que eu havia dito, respondeu também sem muita demora que estavam todos viajando, afinal de contas era o que se costumava fazer em feriadões.

Fiquei meio parado, sem saber o que faria em seguida, já que tinha saído de casa tão cedo,engolido o café-da-manhã e ainda pego dois ônibus para chegar até lá, olhei para os lados e como caiu a ficha de que não poderia fazer mais nada, olhei para ela, sorri, agradeci e me preparava para ir embora, afinal aquela mochila não estava nada leve. Então, quase que abruptamente, Dona Anita começou a falar, primeiro do dia, de como estava lindo e de todo o calor que estava fazendo, depois do trabalho, que não demoraria a terminar e eu ali, parado, com uma mochila com certamente mais de quatro quilos nas costas, “aquele jeans impiedoso” e aquela blusa preta, embaixo daquele sol, num dia que ela própria havia caracterizado dizendo: “Quanto calor não é meu filho? Isso é um problema para quem está na menor pausa!”.

Apesar de todo desconforto, não teria coragem de interrompe-la, ainda prefiro não usar a falta de educação, a não ser em casos extremos (ainda não os classifiquei).

Em poucos minutos, aquela senhora começou a me contar sobre sua vida, suas aventuras, opiniões, casos e por alguns instantes até imaginei que ela era meio louca, não fiquei intimidado com isso, apenas não estou acostumado com pessoas tão livres verbalmente.

Dona Anita, nascida na cidade de Salvador, não conheceu o seu pai e não ficou com a sua mãe nem mesmo tempo suficiente para sua amamentação, fora “dada” a uma família pobre da mesma cidade, com talvez um pouco mais de disposição para lhe dar cuidados. Cresceu sem luxos, aliás, simplicidade é a palavra ideal para caracterizar tudo que teve durante toda sua vida. Não foi muito longe nos estudos, casou-se, teve cinco filhos, ficou viúva, teve alguns netos, alguns casos, hoje mora só.

Vive num casebre, numa invasão num bairro humilde de Salvador, recebe a visita de seus filhos e netos com razoável freqüência.

Ainda não deve ter ficado muito claro o porque de Dona Anita ser assim, tão especial, explico..

Essa senhora, desdentada, com a vassoura na mão, deu-me uma aula de vida. Contou-me da importância do viver simplesmente, desprendida, da paciência, do dividir, do amar, do se importar e do ignorar, do se envolver e do deixar, do cuidar e da limitação da proteção, da vida, da morte e da esperança única de ser feliz, assim mesmo, sem dinheiro, sem cobranças, sem violência, sem impaciência, sem desigualdade.

A minha surpresa ao ouvir tantas coisas, tão bem colocadas, não foi devido a “originalidade” de nenhum desses assuntos ou aspectos e sim pelo fato de ouvir daquela senhora, coisas que nesses meus simplórios vinte e três anos de idade não ouvi tão bem postas por nenhum dos meus professores da universidade ou mesmo do colégio e muito menos por aqueles conselheiros de boteco, desses que vigiam sua vida, esperando a primeira ou próxima oportunidade de te dizer o que fazer, como agir, cínica e descaradamente, já que nenhum deles sabem o que fazer ou como proceder na própria vida.

Depois de alguns minutos de conversa, na verdade eu estava apenas ouvindo, em certos momentos fazia uns gestos de concordância ou desaprovação de acordo com o que ela contava, mas falar mesmo, só monossílabos para dar seguimento ao monólogo, quer dizer, diálogo, não conseguia me desvencilhar do que dizia, das expressões que fazia e das gargalhadas sem justificado motivo que dava, continuei ali, parado, e já me esquecia do peso da mochila ou das roupas que provocavam insuportável desconforto. Apenas tinha um enorme desejo de poder ficar escutando tudo que ela pudesse e se lembrasse de dizer, para poder fixar bem na mente o melhor jeito de viver segundo a sua perspectiva.

Em determinado momento olhei para o relógio, quase que involuntariamente, tenho que dizer que este é um péssimo hábito, do qual ainda não consegui me livrar, não consigo viver sem relógio, não importa que seja de pulso ou mesmo o do celular, mas eu tenho que ter o controle das horas para gerir minha vida.Percebi então que já havia se passado mais de uma hora e meia que eu estava ali, olhando e escutando Dona Anita falar, interrompendo seu serviço e me lembrei que meu tempo estava acabando, teria que ir embora, durante o dia tinha ainda mais um monte de coisas não tão importantes para fazer.

Aproveitei um momento de silencio de Dona Anita para me despedir, expliquei-lhe que havia ainda muito o que fazer ao longo do dia, minha aula iria começar mais ou menos dali a uma hora e eu queria encontrar o pessoal , e afinal de contas estava também atrapalhando o seu trabalho. Enquanto falava isso, aquela senhora desdentada , que parecia ter lido a minha alma só com olhar, estava parada, ainda de vassoura na mão, olhando para algo no céu. Olhei também na mesma direção que ela, mas não havia nada que me chamasse à atenção, a única coisa que eu via era um céu azul, sem nenhuma nuvem, e um ou outro pássaro passando como se tivesse perdido naquele infinito azul. E Dona Anita ali, parada, como se não tivesse bem escutado uma só palavra da minha despedida. Então, quando já me preparava para ir embora, ela novamente me surpreendeu com suas palavras: “Vai meu filho, em paz e que leve por toda sua vida tranqüilidade para passar por dificuldades. Seja Feliz”. Olhei para traz, meio estarrecido, com olhos marejados, não sabia bem o que responder, consegui apenas devolver-lhe o sorriso e um Bom Dia que não foi muito sonoro, mas algo me diz que ela podia perceber o que eu estava sentindo e sabia também tudo o que eu queria lhe dizer.

Como que meio aliviado, por algo que não sei bem o que é, virei as costas e me dirigi por uma rua que não conhecia muito bem, a procura de um ponto de ônibus para poder “terminar de cumprir meus horários”, um pouco já distante, olhei para trás, na esperança de vê-la novamente, mas já havia se retirado, por mais que ela não parecesse se importar com as horas, tinha ainda seu trabalho para terminar.

Não demorou muito cheguei a um ponto de ônibus e acredite, não havia nenhum tipo de cobertura, certamente seriam mais alguns minutos, ou mesmo uma hora de espera, debaixo de sol e com a mochila que voltava a pesar nas minhas costas.

Sinto-me mal por reclamar dessa maneira, afinal, não estava chovendo, o que seria muito pior porque eu não havia levado guarda-chuva, o que torna minha reclamação medíocre.

Enquanto estava a espera do busu, pensei em ligar para minha mãe, para contar-lhe dessa senhora com quem havia conversado. Minha mãe teria ficada encantada, ela é uma dessas pessoas que se importam com o que há de bom nos outros, ao contrário de muita gente, ela observa antes de qualquer coisa as qualidades alheias e muitas vezes não consegue por conseguinte ver os defeitos, tenho que dizer que isso nem sempre a beneficiou, mas a fazia uma pessoa melhor, pelo menos para mim. Ela não mora comigo, vive com meu pai e minha irmã, numa cidade do interior da Bahia, Bom Jesus da Lapa, numa casa não muito grande, porém confortável e aconchegante, lugar onde por sinal vivi até meus 14 anos de idade. Hoje, moro em Salvador, e confesso que tenho me adaptado a duras penas ao estilo de vida da capital, ainda me faz muita falta a tranqüilidade do interior, a proximidade com as pessoas, ao modo despreocupado que se tem de ir e vir, a dimensão dos problemas, que posso afirmar que são bem menores, sem falar na presença dos meus familiares, e como não poderia deixar de ser, da comida, não há comida como a preparada no interior,nada de comida oriental ou francesa, ou esses fast-food horrorosos, eu estou falando de arroz com açafrão, feijão com muita carne e pequi, surubim frito, pescado ali mesmo no Velho Chico, e de sobremesa, nada de petit gateau, mas sim um bom doce-de-leite caseiro, ou uma paçoca de amendoim como só minha mãe sabe preparar. Acho melhor mudar de assunto, estou começando a ficar com fome e aqui em casa no momento só tem biscoito e macarrão instantâneo.

O fato é que desisti de ligar para minha mãe naquele momento, distraí-me com outros pensamentos e observando pessoas indo e voltando, passando umas pelas outras sem se olharem, sem se cumprimentarem, nem mesmo com um bom-dia. É como se a existência ou inexistência de cada uma não fizesse a menor diferença para outra. Isso é algo que sempre me intrigou, afinal, qual a razão de existir tanta gente no mundo, se via de regra não representamos coisa alguma uns para os outros?

Eu sei que é impossível conhecer todas as pessoas do mundo, da minha cidade, as vezes até do meu bairro, pra ser sincero não conheço nem mesmo todos os moradores do meu prédio, mas isso me inquieta e eu gostaria realmente de poder conhecê-los, todos, ouvir coisas sobre os seus dias, sobre as suas famílias, sobre o que gostam e o que desgostam.

Acho as pessoas formidáveis,porém complexas demais, se não conhecemos bem nem a nós próprios imagine os outros. Creio que não haveria espaço suficiente no meu HD para guardar tantas informações.

Depois de alguns devaneios, eis que chega o meu primeiro bus, enfim irei me sentar confortavelmente naquelas duras cadeiras e torcer para chegar na facul antes do início da aula.

Pra minha sorte, parece que a sexta-feira preguiçosa fez com que a cidade ficasse mais lenta, ônibus vazio, transito fluindo, sentei-me, coloquei meus fones e comecei a ouvir a playlist mais antiga do meu celular, nela é possível encontrar de tudo,Oswaldo Montenegro,Seal,Simply Red,Michael Buble,Masterplan,Elis Regina,Cássia Eller e para variar, Nando Reis.Não sei bem porque insisto em deixar essa coisa no meu celular, apesar do evidente bom gosto, e nisso a modéstia não pode influir, toda vez que a escuto sinto uma nostalgia infeliz que atinge inevitavelmente o meu humor. Já pensei mais de um milhão de vezes em excluí-la, em contrapartida pensei outro trilhão no desespero que sentiria ao não encontrá-las novamente quando me sentisse acometido do mau da ausência. Assim, observando a atitude mais favorável, prefiro não testar a exclusão, tento no máximo me eximir de escutá-la. No momento, não consegui resistir.

Dessa vez, fiquei muito feliz por perceber, que não fizeram tanta diferença para mim.

Em meia hora já estava na porta da facul. Subi as escadas rapidamente a fim de encontrar o pessoal,porém, para a minha decepção e desestímu-lo, aquilo mais parecia um campus fantasma. Nada de Pedro, Rafa, Matheus, Nanda, Lu, Dani. Todos uns ingratos, falta em massa, era só o que me faltava.A Nanda e o Matheus até dá pra perdoar, já que eles também não são de Salvador e uma hora dessas certamente já estão a caminho de casa, mas os outros?? O motivo desse ser o mesmo, estão acometidos da Falcetis Caras de Perobeles, vulgo descaração, preguiça e similares.Podiam ter me avisado , compartilharia do mau.

Fiquei no pátio, perambulando, conversei com alguns conhecidos, passei na Tangerina, uma lanchonetezinha que a gente costuma ir nos intervalos das aulas, fui ao laboratório ver uns e-mails e para não perder o costume fui à biblioteca, no momento essa foi uma decisão infeliz para minhas vértebras, já que consegui tornar a mochila ainda mais pesada com alguns livros.

Depois, já que estava ali mesmo, resolvi assistir as aulas.

E vamos, que vamos para a aula de direito civil, depois direito administrativo e enfim, casa.

As salas estavam praticamente vazias, o pessoal meio disperso, não foi um dia de grandes discussões.Assisti as aulas, fiz algumas anotações, piadas que já são corriqueiras com o professor de Civil e fiquei admirando a morena da aula de Administrativo, ainda não sei nem o seu nome, mas sei que ela morde a tampa da caneta, que assim como eu não se interessa muito pela aula de adm, usa um transversal na orelha direita, tem o cabelo comprido, quase na cintura, liso, usa umas sandálias coloridinhas, um relógio branco com uns desenhos, não fala muito durante a aula, mas tem o sorriso mais lindo de todo o campus. Vê-la ali, tornou a aula até mais interessante. Isso me lembrou que não posso esquecer de arranjar uma maneira de descobrir seu nome e tentar sorrateiramente me aproximar dela, o semestre está passando muito rápido e tenho que resolver isso o quanto antes. Por enquanto, procuro me sentar em um lugar no qual eu possa ficar observando-a sem que a sala inteira perceba e de onde, ao final da aula, de para vê-la se levantar, pegar os livros, jogar o cabelo que cai no rosto para trás e sair timidamente da sala.Ah, não posso deixar de falar que ela tem uma tatuagem no pé, que até hoje não consegui ler. Isso me lembra, que tenho que resolver essa situação o quanto antes, afinal, tenho até o final do semestre para descobrir o que está escrito no seu pé. Torço para que o nome dela seja Lívia ou Beatriz, adoro esses nomes.

Quando acabou o espetáculo da sua saída, levantei-me e sorri pensando milhares de coisas.

Enfim, mais ou menos onze e meia da manhã, e lá estava eu, novamente parado, exercitando minha postura com aquela mochila nas costas, debaixo de sol, esperando o primeiro bus da peregrinação até a minha chegada em casa.

Hoje seria o primeiro dia durante toda a semana, que não teria que me preocupar em tomar uma caneca de café com um quilo de Nescau para ficar o máximo de tempo possível acordado estudando prova, mesmo porque não teria aula no sábado.

Eis que em vinte minutos chega o meu primeiro bus, o que é motivo de satisfação, já que geralmente ele não demora menos que meia hora para aparecer e quando chega costuma esta com gente até no teto! Entrei e dei uma rápida olhada em todos os possíveis bancos desocupados e encontrei, no lugar que eu menos gosto, no fundo do bus, mas que naquele momento não quis me dizer nada, já que só conseguia pensar em me sentar o quanto antes e dar uma folguinha pra minha coluna.

Apesar do meu temor, que não servia para nada, lá estavam eles, estudantes de Ensino Médio,divididos em seus respectivos grupinhos, roqueiros, meninas, meninos, indecisos, tímidos, nerds, todos coma algo em comum, loucos com hormônios exalando até pelos pêlos das sobrancelhas, tenho que confessar que me sinto verdadeiramente intimidado por esses seres. E assustado, toda vez que me recordo de que não há muitos anos estava bem enquadrado em pelo menos um terço daquelas características, com o agravante do cabelo roxo.

Mas isso ficou para trás, me livrei de todas as provas materiais que pude, menos da miserável memória de alguns amigos, tenho esperança de que o tempo faça isso por mim.

Resolvi deixar as assombrações do passado de lado e me sentei lá, exatamente no banco que fazia divisão dos grupos, foi um grande desafio para mim.

Mas hoje, havia algo de diferente naqueles adolescentes, na conversa, no comportamento. Comecei então a prestar atenção em tudo que diziam, ao todo, juntando os dois grupos, tinham mais ou menos oito estudantes, entre meninos e meninas.

E , apesar de ser comum a fala nada discreta, eles praticamente gritavam, as meninas usavam maquiagens muito fortes, muita bijuteria e a farda cortada com a barriga a mostra, os meninos usavam brincos, bonés e imensas correntes no pescoço, que de tão grossas deviam causar torcicolo.

Um dos meninos começou a narrar o seu último fim de semana, qualquer desavisado que começasse a prestar atenção as coisas que ele dizia, imaginaria que se tratava de um filme ou seriado policial, desses bem esdrúxulos. O fato, é que a cada palavra dele, eu ficava cada vez mais assustado. Ele começou a contar que fora juntamente com mais alguns amigos, parado por policiais na orla, enquanto voltavam para casa a pé, simplesmente porque não queriam pegar um ônibus, foram postos de joelho e cutucados com as armas dos policiais, que perguntavam o que aquele “bando de preto, favelado,pivetes”, faziam aquela hora no bairro de “playboyzinho”, e eles apenas respondendo que estavam voltando para casa. Depois, ele começou contar como fugiu do tiroteio que teve na boca de onde é vizinho, e como seu amigo foi praticamente decapitado, largado como um animal qualquer na rua e que ele segurou a cabeça dele e falava como dava para ver as vísceras. O pior de tudo, era ver este mesmo menino, que contava estes absurdos, dar risada, achar aquilo engraçado e o pior de tudo, normal. E todos os outros colegas, pareciam concordar que não havia nada de mais comum no mundo do que sofrer abusos por parte de policiais , ou mesmo correr de balas durante um tiroteio como se estivesse brincando de esconde-esconde, ou ainda ver um amigo, da sua idade, caído no chão com a cabeça quase solta do pescoço. Nesta hora, creio que já não conseguia disfarçar minha cara de perplexidade, surpresa e talvez até desaprovação.

Senti vergonha, por ver garotos tão jovens sem nenhuma perspectiva de futuro, acreditando em sua própria morte antes dos dezoito anos e por imaginar que tudo aquilo que eles diziam faz parte do mundo em que eu vivo, da sociedade que de alguma maneira ajudo a produzir, seja por fingir que não vejo e não ouço, seja por negligenciar barbaridades que não me afetam diretamente, pelo menos não a curto prazo, seja principalmente por atos omissivos que pratico continuamente e que não faço muito esforço para corrigir.

Comecei a ficar enjoado, a minha covardia frente ao que acontece no mundo estava mais do que nunca evidente para mim mesmo. Ia crescendo dentro de mim uma angústia, meus pensamentos começaram a embaralhar-se, e acho que nunca desejei com tanta intensidade estar em outro lugar. Respirava fundo e contava os postes que iam passando para tentar me distrair até a chegada ao próximo ponto. Felizmente a demora não durou mais de dez minutos, parei no trigésimo poste. Nunca tinha percebido como aquele trajeto era bem iluminado. Levantei-me, ainda meio tonto e dei as costas para aquelas crianças, como se deixasse para trás apenas mais um pensamento ruim, pra ser sincero, desejei mesmo esquecer tudo aquilo que escutei ali.

Respirei contínuas e pausadas vezes após descer do bus, aproveitei a intensa movimentação de pessoas no centro da cidade para distrair-me. Fui ao shopping, passei pelos três pisos, depois me sentei em um banquinho no térreo e fiquei observando toda aquela gente, indo e vindo com montes de sacolas, esbarrando-se, subindo e descendo a escada rolante, comendo um monte de Mac porcarias na praça de alimentação, algumas meio perdidas, distraídas, andando a procura de nada, essas são as minhas preferidas, sempre tive vontade de saber o que esta passando na cabeça delas, algumas conversando no celular, vendedores torcendo para dar o horário de saída, mães arrependidas de terem entrado com os filhos nas lojas de brinquedos ou de doces. É,a vida de todo mundo passando ali, na minha frente, e a minha? Acho que estava passando também, mas isso não me preocupava, enquanto assistia o tempo passando para os outros, o tempo se preocupava em assistir a minha, muito provavelmente dando risada dos meus “desperdícios”.

Já mais aliviado e pensando em outras mil coisas, voltei a minha peregrinação e dirigi-me ao terminal para pegar o último bus do dia.

Fui descendo a ladeira, cujo nome desconheço, mas que parece ter vida própria, devido a imensa quantidade de gente e de ruídos, pra todos os lados que se olhe é possível ver barracas, vendedores ambulantes, um tentando gritar mais alto que o outro, e são pulseiras, óculos, guarda-chuvas, água, sorvete, pilha, controle remoto, sandálias, relógios, tudo obviamente “ de marca”, isso sem falar no aroma de acarajé, que se espalhava ao longo de todo o caminho, convidando quem por ali passasse a dar uma experimentada.

Dessa vez, resisti bravamente ao convite, acho que a ansiedade de chegar logo em casa estava falando muito mais alto.

Não fiquei muito tempo no terminal, resolvi pegar o primeiro ônibus que passou e que faz o trajeto mais longo até minha casa.Acredite, já eram quase três da tarde.

Aproveitei para ir olhando a cidade passar por seus bairros desiguais , Federação, Garcia, Engenho Velho da Federação, Comércio, Lapa, Barroquinha, Parque São Brás, Nazaré, Vale das Muriçocas, Vitória.

Só então, vendo tanta diferença, percebi que não era difícil imaginar histórias como as que aquele adolescente contava, acontecendo o tempo inteiro, fazendo com que tudo pareça normal.

Dessa vez não aconteceu nada de extraordinário, com exceção do cenário,decidi não ouvir novamente aquelas “adoráveis” músicas da “minha lista”, nem prestar atenção a conversa de ninguém, apenas ouvia os ruídos da rua e observava os lugares por onde passava, sempre procuro gravá-los, mas a verdade é que a grande maioria ainda é estranha para mim, sou péssimo em me orientar em relação a endereços e coisas do tipo e esperava chegar logo ao meu querido destino.

Quase cinco da tarde, enfim, Brotas, o meu bairro, difícil dizê-lo assim, já que é tão vasto, que conheço malmente o meu quarteirão.

Cheguei em casa exausto, mas , satisfeito com o meu dia,ainda leve pelo encontro com Dona Anita,numa dúvida ainda maior sobre a exclusão do playlist, extasiado por ver a morena,chocado por conhecer mais a cidade em que vivo como ela é em verdade, feliz por poder perceber o tempo passando para os outros, confortado por ter gravado mais três pontos de referencia até a chegada em minha casa e surpreso por ter conseguido carregar aquela mochila por tanto tempo,infeliz.

Subi as escadas correndo, com o resto de fôlego que me restava, para sorte da natureza e do meu bolso e azar das minhas pernas e coluna, aqui no prédio não tem elevador, tento acreditar que é em função do que se chama de sustentabilidade, é mais legal pensar assim. Abri a porta coma irritação de costume, já que nunca consigo achar a chave certa de cara,entrei,tirei aquela mochila das costas, deixei jogada na sala mesmo, abri a porta de vidro da sala, que dá pra uma varanda,quando a gente abre ela é como se todo o vento quisesse entrar para ver o que está acontecendo aqui, corri para o banheiro para tirar aquela roupa insuportavelmente desconfortável e tomar um delicioso banho de água fria, só assim , num dia tão quente para esse banho ser delicioso, já que o chuveiro estava desligado não por vontade nossa, mas como maneira de economizar energia.Novamente é melhor pensar que isso é apenas em função da melhoria da situação ambiental atual. Na pior das hipóteses, sei que estou fazendo um ambientalista feliz. É bom fazer piada com isso, já que é tudo muito sério mesmo e eu próprio já desenvolvi uma porção de trabalhos nesse sentido, dei cursinhos e fiz cursos. Mas, a medida que os dias passam, aumenta minha descrença, sinto-me cada vez mais próximo da morte, espero que isso não tenha soado demasiadamente dramático, é só que o ser humano é um suicida em potencial, e o pior de tudo, é que ele vai se matando aos poucos, seja por intoxicação, sede, destruindo a camada de ozônio favorecendo o aumento do número de pessoas com câncer, de pele, de pulmão. O homem é um tipo suicida psicopata, investe em uma morte a longo prazo, dessas que o consome até o último suspiro.

Que tristeza, eu sei, espero pelo menos poder viver até dois mil e vinte, porque morrer aos vinte e três de idade é como cortar o tronco de uma planta prestes a florescer. Além do mais, ainda tem o segundo turno das eleições, quero ver o que vai resultar esse embate Estrela versus Tucano, por hora não poderia deixar de brincar com o fato de que um tucano não voa alto suficiente para alcançar qualquer estrela que seja. Tem também a Copa do Mundo aqui no Brasil daqui quatro anos, o Bahia chegando na primeira divisão, meu Vascão desbancando aqueles paulistas ordinários e a morena para eu convidar para sair até o final do curso, quer dizer, semestre!

São tantas coisas, todas assim resumidas só por causa de um banho frio, que ridículo.

Ah, moro com uma prima, na verdade ela não é bem a minha prima, há alguns anos ela se casou com meu primo, teve um filhinho e depois se separaram, é minha pequena, e isso eu digo literalmente, ela tem 1,53 de altura, olhos verdes e uma risada que não cabe na boca de tão grande que é. Geralmente ela passa o dia inteiro fora, já que sai cedo para ir a faculdade e só retorna do trabalho à noite. Namora com um garoto, que mais parece um desses meninos que a gente costuma chamar de “amarelo”, mas que é muito agradável, tem um bom senso de humor e idéias muito boas para “ conquistar o mundo”, como ele sempre diz, estuda algo relacionado à informática, nunca lembro direito o que é, o fato, é que passa mas tempo aqui em casa do que na casa dele mesmo.

A parte mais legal de quando estamos juntos, é que não costumamos passar mais de cinco minutos calados, ou sem dar uma risada sequer, nem mesmo quando estamos em nossas sessões de cinema, mas esses dias estou ficando só, já que eles estão aproveitando que o irmão do orelhudo viajou, e vivendo dias de marido e mulher na sua casa.

Já falei uma porção de vezes pra eles, não inventem de se casar antes de eu me formar, porque o máximo que irão receber de presente é uma toalha com seus nomes bordados. Acho que isso até tem ajudado-os a prorrogar o casório.

Depois do banho, abri com cuidado a porta do meu quarto, tive medo que de lá saíssem cobras e lagartos, já que durante toda a semana tive provas e não parei para por as coisas em ordem, olhei para todos os lados, inclusive para o teto e me senti aliviado por haver apenas a bagunça de costume para ser arrumada.

Me troquei, e comecei meio a contra-gosto a cumprir com minhas obrigações, isso era mais ou menos às seis da tarde, só fui acabar lá pelas oito. Lavei uns pratos, varri a casa, lavei algumas roupas e enfim me sentei para fazer nada. Tenho que me lembrar de providenciar um sofá o quanto antes, fazer nada no chão da sala é muito desconfortável.

Liguei a TV, assisti as mesmas asneiras de sempre, até me cansar e ligar o DVD para escutar algumas músicas, na verdade para escutar Nando Reis, o CD dele já está quase perfurado.

Preparei meu Nescau, que sempre me dá um trabalho, por que só serve se estiver bem quentinho, abri o armário para verificar as opções de biscoitos disponíveis, os salgados me agradam mais, escolhi o que estava visualmente mais fácil de ser pego, sentei novamente no meu local de fazer nada e comi rapidamente um pacote inteiro de biscoito.Quando terminei, até queria beber um pouco mais do meu Nescau, mas estava com tanta preguiça de levantar para esquentá-lo, que fiquei ali mesmo, largado no chão, pensando pecaminosamente em quanta preguiça estava sentindo e em como seria bom se minha mãe pudesse prepará-lo para mim, ou meu pai, mas o forte do meu pai são mesmo os sucos.

Passado o imenso desejo de Nescau, (ou será de mimos dos pais?) agora são dez da noite, recebi um curto telefonema dos meus pais e aproveitei para fazer as provocações de costume à minha irmã.

Logo após, na falta de algo melhor para fazer, dei uma olhada nas minhas redes sociais, para variar não havia nada de novo, as mesmas pessoas, os mesmos tipos de foto,os mesmos comentários sem nexo, todas as alienações corriqueiras, o que representa na verdade e infelizmente a parte mais engraçada da minha viagem por esse mundo de internetês, típicos profiles e típicas mentes nada opiniosas .

Sinto que o que há de melhor para fazer a essa hora é mesmo me deitar, na minha confortável cama de solteiro de molas para tentar dormir, com tal ironia, não poderia deixar de me lembrar e me rir, ali sozinho mesmo, da história dessa cama.Em resumo, o fato é que eu queria comprar uma cama de casal, sem molas, e por vezes já havia comentado isso com minha mãe, mas acontece, que querendo me fazer um agrado, que por sinal eu achei muito legal, meu pai foi até a loja, sem me comunicar e comprou uma cama “bem parecida ” com a que eu queria, com molas e de solteiro.Fiquei meio sem graça de pedir para ele trocar, desde então, venho me adaptando a minha cama, inclusive, tenho que confessar que as molas nem são tão ruins assim, pelo contrário, posso me atirar nela sem medo de quebrar uma costela com o impacto.

Passado esse momento “falha no engano”, desliguei todas as lâmpadas da casa, celulares , e também a TV e o DVD para me preparar para dormir.

Olho na direção do teto, mas com a casa todo escura não faz muita diferença, afinal, tudo que vejo é breu. Em momentos assim, me vem sempre a cabeça os mesmos pensamentos, desses infelizes de tão inevitáveis que são, sobre amores não bem sucedidos. Seria perfeita a trilha sonora de Vinícius de Moraes, sobre tudo que penso então: “ E por falar em saudade, onde anda você?Onde andam seus olhos..”E quando isso acontece, divido-me entre as lembranças e os pedidos que faço silenciosamente para que me venha logo o sono e me apague .

E caso eu não acorde novamente, eis aí a presunção de quem fui, já que renovo-me com os dias, e a cada situação que vivo nem eu sou eu mesmo, nem a situação é a mesma, o que me reitera a idéia de que não findo, transcendo, nunca tendo de tal modo a certeza de quem fui.

Fernando Alves.