Amor entorpecente

Zé Caparica

Bom dia. Eu vivi isso. E como a vida é feita de certezas incertas e incertezas que acontecem, nem tudo o que se garante num dia pode-se continuar a afirmar quando a realidade ou as circunstâncias mudam. Gonzaguinha era mestre em explicar isso na música “Explode Coração”, mas parece que a gente não entende. Vejamos:

Chega de tentar dissimular e disfarçar e esconder, o que não dá mais pra ocultar e eu não posso mais calar, já que o brilho desse olhar foi traidor e entregou o que você tentou conter, o que você não quis desabafar e me cortou. Chega de temer, chorar, sofrer, sorrir, se dar, e se perder e se achar e tudo aquilo que é viver, eu quero mais é me abrir e que essa vida entre assim, como se fosse o sol desvirginando a madrugada, quero sentir a dor desta manhã nascendo, rompendo, rasgando, tomando meu corpo e então eu chorando, sorrindo, sofrendo, adorando, gritando... Feito louco, alucinado e criança, sentindo o meu amor se derramando... Não dá mais pra segurar, explode coração...

Mas eu vou falar uma coisa. É de se admirar o amor entorpecente. Porque não há como crer no amor, seja lá o que é eterno enquanto dure, ou enquanto duro, ou o que seja. Se eu paro e racionalizo só me sobram duas alternativas: ou eu volto a crer que amor romântico é coisa séria, coisa difícil de acontecer, ou eu tenho que ceder às delícias arrebatadoras do amor entorpecente. Só há músicas para explicar, como a mulher bonita e carinhosa que faz o homem gemer sem sentir dor. Só entorpecido. E sabe que faz efeito como uma droga mesmo? Cada um escolhe a droga que lhe deixa mais feliz. Aliás, se faz mal à saúde é o que menos importa. Ninguém usa droga porque faz bem à saúde. Usa porque provoca sensações boas. Os danos, quando existem, são efeitos colaterais. E, da forma que foi vivida, tô dopado até agora.

Existe uma coisa comum entre os entorpecentes, pelo menos nos diálogos de quem vende: essa é da boa. De fato, da desgraçada cachaça até a maldita heroína, incluindo a maconha e essa modalidade de amor, quem usa só tem a elogiar. Veja bem: tira a fome e, portanto, não se engorda. É puro, portanto não intoxica. Traz paz e diversão, portanto não entedia. Acelera o tempo e, portanto, por mais horas que se desfrute, sempre acaba logo. E, como todo entorpecente, fica aquela sensação de quando teremos a oportunidade de usar novamente.

Mas também há limites, como todo entorpecente. Esse não é ilegal, mas jamais se encontra em qualquer esquina ou se acha fácil. Esse amor não aparece por aí. São coisas que acontecem. Como o primeiro baseado. E também, mesmo achando, é impossível comprar. Esse tipo de amor só é dado viver. Ter, impossível.

E se para mim, escrever “amor” já é uma dificuldade, haja vista a quantidade absurda de modelitos de amores, chamar de “droga”, palavra ultra-estigmatizada, é pior ainda. É uma sensação de profundo amor, de profunda sensibilidade e entrega, mas nunca pode ser chamado de droga, por respeito e reverência. Só é chamado de entorpecente porque muda a regra e aqueles amores até então vividos, passam a ser pequenos, insignificantes... Cada um com seu significado à sua época, mas nada parecido com esse tipo de amor.

O amor entorpecente embeleza e alegra, mas não distorce a realidade. Apenas a torna mais bela e provoca rejuvenescimento. Também não nos deixa bobos, falando asneiras e nem nos portando como crianças. Nos deixa felizes como crianças, mas as palavras são poucas, os sentimentos vêm do corpo. Os olhos vigiam de perto, e as emoções nos envolvem como uma nuvem clara e límpida. Se mentir a casa desmorona. Se forçar, emperra. Se quiser dominar, ele some. Se quiser comprar, não há dinheiro suficiente.

Só dá para tirar uma conclusão final. A sensação é de profundo amor. Mas não é amor. Vai além disso. É mais sublime e mais elevado. Muito mais elevado. Só se pode viver; nunca ter. E é preciso vivê-lo com o máximo de intensidade, porque não se sabe a próxima vez que a vida vai nos dar a oportunidade de nos dopar novamente de forma tão transformadora.

É coisa para poucos. Me senti um privilegiado. Um escolhido. Mais duas dessas e eu começo a achar que Deus existe. Se for esse o preço... baratíssimo!

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