CONVERSA INFORMAL SOBRE A MINHA MÃE

Mamãe era doce, como doce eram os “tijolos de leite” feitos por ela. Havia um tacho grande de cobre, onde ela girava e girava a colher de pau, e as camadas do doce se formavam até chegarem ao ponto certo. Ela nunca errava. O doce era despejado em fôrmas de madeira e tomava o formato de tijolo. Era para o consumo próprio da família.

Assim foi a sua vida. Ela nunca errou o “ponto”.

Mamãe era Zeladora do Sagrado Coração de Jesus e quando chegava à época dos festejos do padroeiro da cidade, ela tinha o seu dia responsável pelo leilão que arrecadava dinheiro para a sustentação da catedral. Saíamos pelos vilarejos, em redor da cidade, a recolher dádivas, geralmente ovos, que mais tarde se transformariam em gostosos bolos, leiloados para essa finalidade. A aventura de andar por aqueles lugares afastados era excitante. Éramos recebidas pelo povoado, com carinho e presteza. Gostávamos de beber a água cristalina depositada em potes de barro, que nos era servida em copos de alumínio ou latas de flande bem areados. Não estou certa dos métodos usados para clarear as águas barrentas, recordo-me apenas que era água gostosa. As águas de hoje não têm gosto, por quê?

Dona Amélia, ou dona Neném, como era mais conhecida, foi uma mãe zelosa com os filhos e tantos sobrinhos que nos visitavam com assiduidade. De relacionamento humano fácil, ela mantinha relação de amizade com as moças da cidade, como conselheira e amiga confidente. Casamenteira que só ela! Achava sempre que a fulana se daria bem se namorasse o cicrano. Quanto às filhinhas, não nos permitia namorar, não tínhamos idade para tal. Minha irmã mais velha conseguiu escapar do cerco, visto que fora estudar na cidade de Floriano, na casa dos tios. A minha irmã mais nova era obediente. As “surras de chinelo” sobravam para mim, que gostava de namorar escondido, geralmente, aproveitava as saídas das “novenas” que eram constantes na igreja de Simplício Mendes. Para me redimir, devo salientar que eu namorava mais de troca de bilhetinhos do que pessoalmente. Eu era uma romântica incurável, também mamãe o fora. Depois que me tornei adulta, ficamos amigas confidentes.

Mamãe falava em tom de voz baixa, ao contrário de papai, que falava alto. Mas quando ela se aborrecia com ele, “virava a mesa”. Ele não se alterava. Na verdade, eram dois apaixonados. Certa vez, já idosos, papai estava na janela, a olhar a rua, quando mamãe se aproximou e perguntou-lhe: “em quem pensas, querido?” — ele respondeu: “em ti, meu amor”. Mas ela não era sempre assim,tão mansinha, uma vez uma empregada doméstica, por razões que já não me lembro, bateu-me com violência. Mamãe ouviu os meus gritos e correu para me socorrer e, ao perceber que fora a criada, partiu para ela com o chinelo na mão e lhe deu uma baita surra.

Costumávamos, eu e minha irmã caçula, em finais de tarde, fugir de casa para ir brincar com as amigas, na casa da minha madrinha. Pelo trajeto que percorríamos forçosamente passaríamos pela janela lateral da nossa casa, e como a máquina de costura da minha mãe ficava próxima à janela, passávamos correndo, aconchegadas, para não sermos vistas. Mamãe nos flagrava e lá vinham os cocorotes. Às vezes, ela, com seu coração bondoso, fingia que não nos via passar. Ela não nos permitia incomodar os visinhos. Para isso, tínhamos balanços no quintal e muitos brinquedos.

Mamãe tinha um espírito nobre e caridoso. Ela costumava dar almoço para os mendigos que tocavam à nossa porta. Costumava, também, cuidar dos estranhos que chegavam à cidade, feridentos, com suas chagas abertas. Ela não se constrangia de cuidar daquelas feridas cheias de pus, uma vez que o médico da cidade necessitava se ausentar para cuidar dos doentes das regiões circundantes. Aquela mulher tinha mãos santas. Pela frequência de pessoas com feridas, que surgiam na cidade, podia concluir-se que a notícia dos cuidados que ela dispensava àquela gente corria estrada.

Ocorreu um fato muito triste nas nossas vidas, a morte do meu irmão, eu tinha doze anos e ele catorze. Um incêndio no bar do nosso primo resultou na morte desse irmão. Mamãe cuidou dele durante cem dias, com coragem e muito amor. Depois do falecimento dele, ela sofreu desesperadamente, mas se recuperou para cuidar de nós, os outros filhos.

Mais tarde, em Teresina, mamãe, sempre que uma filha, nora e sobrinha iam ter neném, ali estava ela se mudando de “arma e bagagem” para ajudá-las a cuidar dos bebês, durante o resguardo dessas. No meu caso específico, ela, já viúva, passava um ano comigo, no Rio de Janeiro. Foi uma avó exemplar.

Mamãe foi uma mulher especial. Sempre tentei imitá-la. Quando me casei, ela me disse: “nunca durma brigada com o marido”. Aceitei o conselho.

Rita de Cássia Amorim Andrade
Enviado por Rita de Cássia Amorim Andrade em 11/10/2010
Código do texto: T2550119
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