Meu querido mentiroso
Ouvir uma boa mentira pode ser divertido, desde que seu criador não perceba que foi descoberto. Não falo destas mentiras feitas para trapacear ou tirar qualquer proveito, mas daquelas que se destinam a agradar, mostrar que é uma pessoa legal, inteligente e amiga.
Tive um amigo com o qual mantinha longas e agradáveis conversas que versavam sobre os temas mais variados. Sempre acabava que tínhamos as mesmas ideias, opiniões e gostávamos das mesmas coisas. Tudo ia bem até que, um dia, enquanto contava um fato que havia se passado com ele, percebi um olhar mais escuro, vago, como quem “pescava” palavras no ar. Ele estava mentindo.
Fiquei atônita. Percebi que todas as histórias contadas por ele até então eram invencionices. E mais. Ele não era quem dizia ser. A profissão, o lugar onde morava, a família, tudo não passava de um grande embuste.
Depois do susto veio o divertimento. Ele não percebeu que seu segredo havia sido revelado e seguiu contando suas histórias, algumas mirabolantes e improváveis, mas todas muito divertidas. A minha favorita tratava de uma fuga cinematográfica depois de um “enrosco” com homens fortemente armados...na Colômbia. A criatividade do meu amigo não respeitava fronteiras. Ele também gostava de contar as aventuras vividas com seu grupo de motoqueiros, apesar de jamais ter aprendido a pilotar uma motocicleta. E eu, com cara de quem-acredita, atenta e já imaginando o final. Sabia onde ele pretendia chegar com suas lorotas. Além disso, costumava repeti-las, incluindo novos detalhes.
O meu querido-amigo-mentiroso era simpático, charmoso e inteligente, mas eu já quase não saberia dizer quem era ele mesmo e quem era o personagem que inventara. Além de criar belas histórias ele as contava maravilhosamente bem e era sempre uma alegria ouvi-las. Cheguei a pensar que afrontava minha inteligência, mas ele era movido pela vaidade e acreditava cegamente em seu poder de persuasão.
Um dia, sabe-se lá por que motivo, ele resolveu contar a verdade. Ficou horas “desfazendo” a imagem errada que me havia passado e eu ali, tentando parecer surpresa e magoada. Não estou certa se foi meu talento teatral que o convenceu. Sua arrogância era tal que sequer considerava a possibilidade de haver sido desmascarado.
A princípio me fiz de ofendida, depois tratei de perdoá-lo. Ainda assim, nossa amizade acabou. Por muito tempo tive saudades do meu amigo. Não do legítimo, mas do personagem criado à perfeição para me agradar.
Quanto tempo teria perdurado a relação se ele não tivesse contado a verdade? Não sei. Mas continuei admirando sua capacidade de inventar e contar belas histórias e cheguei a pensar que seria um ótimo escritor. Mas preferiu empregar seu talento num escritório de advocacia. Nossa amizade não sobreviveu porque deixou de ser divertido estar com ele. O verdadeiro não era tão agradável quanto o imaginário.
(Publicado em Salva-vidas Crônicas de oficina; oganizado por Fabricio Carpinejar;Porto Alegre;Nova Prova;2009)