Negão
Francisco andava pelas ruas de Brasília, e encontrou, sob a sombra de uma árvore, um mendigo. Ele estava deitado ao lado de um par de alpargatas velhas e uma garrafa de cachaça, com o conteúdo na metade, e vestia um casaco sujo cinza e azul e uma bermuda surrada cáqui. Francisco conhecia essa pessoa, o apelido dela era Negão, e o nome, muito complicado.
-E aí, negão, você tá com fome?
-Sim, - respondeu ele com sua voz sofrida e evidentemente ébria. - não como bem há três dias.
-Então peraí que eu vou comprar um pastel para você. Quer de que?
-Na verdade eu queria mesmo uma marmita. Pastel não enche barriga.
-Está bem. Espere aí.
Francisco comprou a marmita desejada por Negão e uma lata de refrigerante para acompanhar, e voltou para a árvore sob que este descansava.
-Aqui está. - Disse, entregando a comida e o refrigerante.
-Obrigado. - Respondeu o miserável, abrindo a bandeja de alumínio e vendo, com os olhos brilhando, a refeição que tinha em suas mãos.
Negão comeu tudo, e depois deitou outra vez e bebeu um gole da cachaça que estava ao seu lado, e começou a falar, com sua voz embriagada:
-Minha mulher me largou. E por o quê? Uma caixa de garrafas de cachaça. Eu cheguei em casa, e ela tava lá com outro cabra, aí eu fiquei muito puto e falei pra ele "vem cá pra eu te quebrar" e ele falou "calma aí, negão, eu sei que você gosta de uma cachaça, bora tomar uma" aí ele trouxe uma caixa cheia de cachaça, e a gente tomou até eu ficar "bêbu" e então ele levou minha mulher embora com ele.
Francisco não sabia nem o que dizer, pois o negro está contando isso com lágrimas nos olhos, e soluçando entre as frases.
-Te contei - continuou Negão - do dia que o cara tentou me comer? Eu tava lá no Monumental deitado pra dormir de noite, e chegou o cara. Ele era grande e forte, e falou que tava a muito tempo sem comer ninguém, e que ia me enrabar. Aí eu peguei a faca que eu tinha e meti na perna dele. Ele começou a gritar de dor, então eu cortei a orelha dele fora, e fui embora. - Negão contava isso rindo para não chorar, e lágrimas escorriam daqueles olhos quase cegos.
Francisco continuava sem ter o que dizer e, apesar de ser contra a violência, sabia que a vida não funcionava desse jeito na rua. Negão deu mais um gole na cachaça, a essa altura já estava completamente bêbado. E começou a falar coisas sem sentido.
-Você já transou com uma jumenta?
-Não...
-É bom, ela faz assim: - e imitou o som que, segundo ele, seria de uma jumenta tendo um orgasmo.
-Ah. - disse Francisco, enojado.
-E a cachorra, já comeu?
-Não.
E dessa vez, o mendigo velho imitou o som do que, na cabeça dele, seria uma cadela gemendo. Então começou a contar uma história da qual Francisco só entendeu poucas palavras como "boi", "caminhão" e "estrada". Até que Negão deitou-se sobre seu papelão velho, não sem antes tomar mais um gole de sua cachaça, e dormiu. Francisco colocou uma nota de cinco reais no bolso do adormecido e saiu pensando. "Coitado. E pensar que muitas pessoas vivem desse jeito. Que tragédias devem ter acontecido na vida desse sujeito para ele ficar assim? Pobre coitado. Rezarei por ele, tomara que o anjo da guarda dele seja dos bons, porque essa luta ainda não terminou, e não terminará tão cedo".