Rondó Concertante

Não importa de ordinário, se estático ou em movimento. O corpo só encontra sua razão de ser, no estágio de cadáver. E atirado na rua, em meio a balburdia e a curiosidade cruel de transeuntes, cumpre a sua função de fertilizante.

Tudo, absolutamente tudo, se resume a temor. O temor de se abandonar a esperança, e por fim à própria vida, o temor de virar a próxima esquina, e o temor de abrir-se mão da vaidade.

Por isso, o jovem está a dois passos da morte, e mesmo assim, pensa no que vai fazer amanhã.

Na primeira passada, lembra-se dos preços do cinema, e num filme tão sangrento, que resolveria os problemas dos bancos de sangue da cidade. Lembra-se que tem uma namorada mediana. Sexualmente mediana, e de beleza mediana.

Pensa na sua própria hipocrisia, ao aceitar a eternidade, como distante, e ao aceitar o desconcertante ato de existir, como um mal necessário. Mas daqui, ninguém sabe para onde se vai. Por isso, a covardia de enterrar todas as dúvidas da vida, num entulho chamado esperança.

Na segunda passada, há o medo. O ser humano pressente coisas. Como animais. Mas diferente desses, não acredita no que os sinais dizem. Porque humanos são por natureza, traidores. Desconfiados. Por demais atolados em suas próprias mentiras, para aceitar a verdade alheia. Então, vem a alienação. A alienação dos instintos, dos mais elementares desejos do espírito e do corpo. Surge o cínico. O homem sem autoridade sobre sua própria vida.

O ato de se caminhar ereto, de maneira harmoniosa, e forçando-se a coluna vertebral, é antigo. Revelador. Fascinante. Vários músculos fazendo um trabalho gigantesco, para manter um cretino de pé. E este usa toda sua estrutura, para atravessar a rua impunemente. Apenas para ir em direção ao desconhecido. Sem objetivos imediatos. Sem funcionalidade. Não caça, espera. Não vive, se apropria de vidas alheias.

Então, ao final de dois segundo, a pólvora se espalha pelo ar, de maneira ordenada, como todo o acaso estabelecido por Deus. O fogo, este, ilumina por pouquíssimo tempo, acompanhado de ondas sonoras. Estas ondas se propagam em velocidade extraordinária, permitindo o conhecimento de todos: deu-se o inevitável estrondo do fim da criação.

Em meio ao conjunto de ações e reações, surge o projétil. Deslocando o ar, e se atritando com o mesmo, assume alta temperatura, e gira sobre seu próprio eixo, enquanto percorre uma linha reta.

Esta linha reta irá terminar na cabeça do jovem que termina o segundo passo na rua agora apavorada. Assim, o projétil inicia a perfuração do crânio, primeiro pela pele. Esta se rompe em micro-pedaços, de maneira quase desordenada, permitindo assim, primeiro a exposição da camada adiposa, e enfim do crânio. O crânio, este, não oferece resistência, e se quebra. Uma parte vai junto com o projétil para dentro do cérebro, e a outra parte vai para fora, de acordo com a física clássica.

O projétil percorre o cérebro, apagando memórias, desligando sensores. E vai parar, por fim, no muro da padaria, onde assume a fora achatada, já que a resistência do material, não permite sua passagem.

Nesse momento, o sangue escoa pelo buraco causado pela bala e a matéria encefálica, levemente rosada, vai de encontro ao muro, fazendo um desenho semelhante às pinturas de Jackson Polok.

O corpo cambaleia e cai. A última imagem que os olhos viram em um milésimo de segundo, foi tudo o que poderia ter sido. Carros em movimento, sons dissonantes, coxas femininas e enfim, a luz se apagando.

A queda do homem é inevitável. Porque diante do incidente, não pode haver esperança. Nem verdades que possam salvar. O homem, cujo cérebro está exposto ali, na parede, poderia até querer lutar neste último momento, mas lutar é desnecessário.

Fica a imagem da queda deselegante. Do incoveniente de se ter de dar fim às manchas com água e sabão, e depois de se transportar o cadáver para o asilo de todos os desejos humanos: a cova.

Nesse momento, a arma desaparece. Não o tiro ou o revólver. Mas a mão. A mão que é mais perigosa que qualquer vingança divina. A mão sem nome e sem razão. Que sem se saber o motivo, alvejou uma cabeça à esmo. Uma cabeça vazia de coisas importantes ou edificantes para a raça humana.

A mão é um poema sem palavras. É quem faz o serviço sujo da morte. É quem constrói o mundo e destrói sua possibilidade de existência.

Mesmo mortos, os olhos da cabeça perfurada, ainda observam o que se passa. Vê um mundo que poderia ser muita coisa. Mas que não é nada. Um mundo amaldiçoado pela covardia. Pelo descaso. E por uma bala aleatória que girando em sentido anti-horário, deu cabo de um corpo ressentido. Um corpo que tinha sonhos tão comuns, que talvez fosse mesmo melhor estar morto.

A beleza se resume na espera. Somente na espera. Somente minutos antes da cortina se abrir, ou de se colocar os olhos na tela pintada com fluídos corporais. Depois do olhar, tudo o que sobra é julgamento. E todo julgamento, é desnecessário. Assim como é desnecessário descrever um assassinato. Um disparo no meio da cidade.

Por isso, ao terminar de contemplar a arte do assassinato, o espectador, a terceira pessoa que compõe a cena, gira e vai embora. Não se envolve. Além da náusea que sente, e do inconfessável gosto de ver a dor do rapaz caindo, não sente mais nada. Nem revolta, nem repulsa. Tem apenas certezas. E essas sim, nos sempre temos sobre tudo. O espectador tem certeza, que não serviu para nada a corrida evolutiva do homem. A morte é invencível. Não adiantou se aprimorar, ser superlativo, ser intelectualmente superior. O mundo prova que a única coisa que a mente faz bem, são as armadilhas. Estas, apelidadas de acaso. .

O espectador caminha ligeiro, contra o relógio, para satisfazer seu desejo de vida. Já que uma delas está ali, caída na calçada. Em seu íntimo, sente agora desejos lascivos. E por isso, comprime o peito, e passa a mão em sua nuca suada. Um suor tão real, que fede.

Contemplar a arte do assassinato é obra para três visões distintas. A de quem cumpre o desejo divino, a de quem sucumbe ao ciclo chamado de mal e a de quem assiste indiferente, pensando apenas em campos verdejantes, vagabundas nuas dançando e na desculpa que vai dar quando chegar em casa.

O tempo não fechou. O dia será muito bonito hoje. E o som do tiro, ainda ecoa pela cidade...

EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 02/10/2006
Reeditado em 06/01/2012
Código do texto: T254519