No assento errado


        Na região Le Marche, centro da Itália, concentram-se alguns destinos favoritos de brasileiros que buscam intercâmbio cultural, gente de todo mundo, e especialmente, descendentes de italianos. Trilhos de trem atravessam toda região, de norte a sul e leste a oeste. Saindo de Ancona para o interior, trens muito antigos portam passageiros para Castelraimondo, onde se localiza a Scuola Dante Alighieri.
        Dalila integrava um grupo de estudantes desta Scuola, em 2009, e via-se embalada pela excitação de novas descobertas, da visão de tantas paisagens belas. Quatro semanas de estudo se passaram e ela agora queria aproveitar uns dias para passeio. Como era fim da estação fria, inúmeras lojas de roupas de inverno estavam liquidando seus estoques a preços insuperáveis, e em Jesi, segundo informações, os preços dos perfumes estavam imbatíveis. Decidiu ir correndo pra aquela cidadezinha próxima, sem mais delongas.
        No último dia de fevereiro, quando os primeiros raios de sol nem despontavam, dirigiu-se à estação, de casaco e mochila, mapas e lanche. Umas moças despertas e outras sonolentas e uns trabalhadores, todos de casacos pesados, aguardavam o trem como ela, silenciosos.
        Às seis horas e doze minutos, o trem os recolheu. Depois de atravessar pastagens de ovelhas, campos pouco esverdeados e umas gramíneas escurecidas pela neve em Matélica, e outros paesi, seguiu para Fabriano. Ali, ela desceu e logo pegou outro trem, sentido leste.
        Dalila entrou e logo se sentou perto da porta.
        O trem partiu vagaroso, parecendo medir cada palmo de chão. Este comboio era composto de vagões velhos (poucos), muito barulhentos, com a lataria bastante gasta, e que, já há décadas percorria aqueles trilhos. O vagão sacolejava a engrenagem e os passageiros, de um lado a outro, um sacolejo de adormecer,... quase num transe seguia seu curso. Apitava de quando em quando, nos cruzamentos. 
        Numa poltrona unitária, de frente para os demais, ela olhava as coisas meio distraída. Umas pessoas estavam de pé, alguns jovens. Observou que um ou outro a olhava com insistência, mas, pensou: sou estrangeira, é normal. Vestida com charmoso casaco marrom, echarpe vermelha, uma touca de lã cor de vinho, uma bota de cano alto, olhos curiosos, boca faceira e batom, ela, definitivamente, italiana não era. Devo ser esquisita pra essa gente, pensou, enquanto olhava a bela paisagem que se descortinava lá fora. Será por isso que me olham tanto?!
     Um senhor idoso, que se dirigia à saída próximo à estação Albacina, aproximou-se e, sem rodeios, perguntou-lhe:
     - A senhora esteve nalguma guerra?
     - Nãooo!...- respondeu surpresa. E, olhou-o empertigada.
     - Seu pai morreu nalguma guerra? – continuou ele investigando-a. Seu tom de voz era seco, dramático, o rosto forte.
     - Não, meu pai morreu.... faz muito tempo... de derrame... - respondeu pausadamente. – E, nisso, subitamente, o trem parou. Seus olhos se desviaram, e ele desceu. Dalila ficou um pouco incomodada... que coisa tinha a ver com guerra?! Olhou pela vidraça o homem se afastar e, atrás dele, um grupo de estudantes ruidosos, tagarelantes, enfiados em suas jaquetas de inverno. Logo, o trem seguiu. Ficou a observar longamente a estação que se distanciava.
        Começou a ficar intrigada, pois os olhares insistentes continuavam insistentes. Olhos negros, verdes, azuis, amendoados ou não a miravam, alguns se entreolhavam.
        Que coisa há de errado, será?!... uma ligeira insegurança a alcançou. Ajeitou a touca, olhou-se... verificou se algum botão por acaso não estava aberto... A paisagem estava linda lá fora, um tanto seca, entremeada de oliveiras, uma horta aqui e outra ali, fumaças saídas de suas chaminés. Salpicando a paisagem, uns montinhos de neve se acumulavam de vez em quando, os fios de ouro claro do sol não conseguiram derretê-la, tudo aquilo fazia o cenário se abrir num espetáculo mágico ante seus felizes olhos.
        No banco a sua frente, uma das senhoras ali sentadas inclinou-se ligeiramente e lhe falou:
     - Meu tio se feriu na segunda guerra mundial,... – começou a lhe contar, - uns estilhaços de bomba o atingiram, e, infelizmente, ele teve uma perna amputada. 
     - “Oh! Deus... (que triste)”, ia dizer, mas ela a interrompeu: - Mas ele nunca deixou de viajar. E sabe que assim conheceu a Sicília, a Basilicata, a Lombardia,... meu querido tio Giuseppe... e foi se dirigindo para a outra senhora ao lado, num tom de voz mais baixo, e aquela coisa de guerra foi lhe inchando as idéias, ... Que será que tem essa guerra a ver comigo?Olhou-a agora, preocupada (notou que ela tinha só dois dentes superiores e três na parte inferior da boca, e os cabelos branquíssimos se destacavam na echarpe negra). ... a guerra é muito triste,... ouviu-a narrando... Deus!... que nunca mais aconteça... 
        Dalila olhou pro outro lado. No assento a sua direita, um belo senhor de grandes olhos azuis a observava, com olhos oblíquos. Suspeitava que algo estranho a rondava. Abriu a mochila, procurou qualquer coisa pra disfarçar a inquietação, e logo tornou a fechá-la. Mordeu os lábios.
        O trem continuava modorrento,... parou novamente,...e desceram viajantes comuns.
        Ergueu a voz, uma matrona italiana de lá da terceira poltrona, e exclamou, apontando-lhe o indicador:
     - A senhora está no assento errado!... (Todos os olhares daquele vagão se fixaram nela).
     - Hummmm!!! (ufa... enfim, alguém decidiu acabar com aquela aflição)
- Como assim, minha senhora!?... olhou pros lados, pra cima e pra baixo, e, num sobressalto, ergueu-se subitamente.
     - Este banco ali não é para a senhora! – afirmou categoricamente, em alto e bom som. – veja o que está escrito ao lado! – apontou-lhe com sua luva de lã preta, que balançava no ar a mão agitada.
        De pé, num relance, Dalila voltou-se e leu umas palavrinhas junto ao encosto da cadeira... Que mancada!... como não olhei direito onde sentava?!
        A plaquinha dizia: “Assento reservado aos inválidos da guerra”.
        Ela ficou realmente sem jeito, medindo as letrinhas, com vergonha de tamanha distração. Por sorte, o trem já se aproximava da sua estação, passou a mão na echarpe pra disfarçar as faces carmim, e recolheu seu olhar. Olhou os passageiros, ligeiramente. De soslaio, fitou as palavras escritas.
        Que intrigante!... Estamos no terceiro milênio, longe da segunda guerra mundial e os assentos ainda estão reservados. Sinal de respeito.
        Desceu do trem apressada, assim que o apito ruidoso avisou que chegara a Jesi. Que alívio!... Poxa, ninguém a avisou!

                                       
                                                                                Izabella Pavesi


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Artigo publicado na revista INSIEME , ítalo-brasileira, ed.nº 141, set.2010