Morremorrer
Estava sentado somando várias vezes as mesmas notas fiscais. O sol, como havia de ser naquela época do ano, ardia lá fora. Trabalhava naquele escritório todos os dias, às vezes olhava a movimentação lá fora. Pessoas e carros se alternavam na janela que dava de frente para a avenida.
Minhas atividades na empresa eram quase sempre as mesmas desde o dia em que lá entrei. Bater carimbos, assinar e somar notas, receber as correspondências do carteiro, protocolar, dar algumas ordens aos funcionários. Às vezes um café, uma nova olhada para a janela, uma olhada para o jornal e os funcionários no pátio, uma afrouxada na gola da camisa para suportar o calor.
O escritório não era dos maiores e isso dava uma sensação de que o calor a qualquer momento incendiaria todos os papeis espalhados pelo escritório, intensificando ainda mais a sensação térmica por ali e numa escala progressiva e apocalíptica, queimar todas as reservas florestais do planeta e eclodir, a partir dali, com a questão do aquecimento global de uma vez por todas. Isso me obrigava a acionar o ventilador de teto, que espalhava ainda mais a papelada pelo escritório.
Tinha por volta dos vinte anos, por isso, não me preocupava muito com algumas questões ao meu redor. Tinha em mente apenas a conclusão da graduação, que começara há algum tempo, o futuro promissor que deveria efetivar e os contatos que deveria manter. O emprego, naquele momento da vida, me servia apenas como um período transitório de onde sairia e seguiria vôos mais altos. Talvez por isso mesmo não me importasse tanto com os papéis, com os carimbos, com as somas e com o calor infernal.
Aquele cotidiano parecia ter impregnado na minha mente como os carimbos nos papéis sobre a mesa. A vida era apenas a espera.
Naquele dia no meio daquela soma entrou pela porta um dos funcionários da empresa. O suor deslizava abundante da sua fronte. Apertava o estômago com uma das mãos e tentava se apoiar em uma cadeira com a outra.
––Bom dia! Será que o senhor me libera pra eu procurar um médico? – a dor o impediu de dizer qualquer outra palavra.
Prontifiquei-me em levá-lo ao Pronto Atendimento Municipal. Só no meio do caminho é que pude indagá-lo a respeito do que ele estava sentindo – no momento inicial de nosso encontro tanto ele quanto eu estávamos assustados demais para qualquer outra palavra.
–– Começou agora de manhã! Já despejei duas vezes o jantar.
O seu semblante era cada vez mais aflito. Parecia que o suor lhe descia cada vez mais gelado testa abaixo.
Ao chegar ao Pronto Atendimento Municipal a situação parecia haver piorado. Uma fila vinha da recepção, passava pelos assentos e ia dar no portão de entrada. Pessoas conversavam freneticamente expondo e explicando suas enfermidades aos companheiros de fila, outras se queixavam da demora no atendimento e algumas apenas olhavam para o céu sem dizer uma simples palavra – talvez essas pessoas que gritavam mais alto.
No instante em que entramos naquele local e demos com aquela situação o rapaz que acompanhava se envergou em frente a uma lixeira que ali estava e “despejou” pela terceira vez o jantar – eu teria feito o mesmo se tivesse jantado, mas as aulas de contabilidade da noite anterior me impediram disso.
Quando tentava encontrar passagem para chegar até a recepção uma mulher – que fazia parte do grupo dos que reclamavam da demora no atendimento – quase foi atingida por um cabo de vassoura que caiu do segundo andar.
Finalmente chegando à recepção, fui ter com a recepcionista – para minha surpresa, amiga de longa data. Fiquei feliz ao vê-la, mas primeiramente tomei tento da questão que me levara até ali. Enquanto elaborava a ficha de atendimento conversamos um pouco sobre a vida, intercalando as perguntas constantes da ficha com as de nossa curiosidade sobre a vida alheia. Fuxicos de quem não se vêem há algum tempo. Logo ela necessitou da documentação do paciente.
Virando-me para pedir a documentação do rapaz reparei que a fila não se movimentara em nada desde o momento em que havíamos chegado e que ele já havia despejado o jantar pela quarta vez.
Ao pegar a carteira de identidade daquele individuo logo reparei que ele tinha a mesma idade que eu. Fato que me deixou espantado, pois trabalhando na mesma empresa já sabia que ele era casado e pai de família. Abaixei os meus olhos para vê-lo, pele negra, músculos da face contraídos pela dor, mãos contra o estômago, olhos escondidos pela sombra do boné em que cintilava ao brilho do sol a logomarca da empresa. Olhei ao redor e todos ali tinham a mesma feição. Olhei para a praça em frente – velhos jogavam damas – e todos lá mantinham o olhar escondido por bonés com logomarcas, as pernas cruzadas em calças marrons e as sacolas nas mãos.
Virei-me para a amiga que fazia a ficha e notei que ela vivia aquilo todos os dias, aquela era a sua rotina, os seus carimbos, as suas notas fiscais e que talvez aquele fosse apenas um emprego transitório para uma carreira mais promissora e que sairia e seguiria vôos mais altos. Talvez por isso mesmo não se importasse tanto com os papéis, com os carimbos e com as somas de sua vida.