Entulhos

Estamos vivendo a ressaca de uma eleição e emendando com outra, já que teremos o 2º turno da disputa presidencial e, em alguns estados, o 2º turno também para governador. A cidade ainda carrega vestígios da grande festa cívica que foi o dia 03/10. Ainda há muitas pinturas de propaganda de candidatos, muitos santinhos ainda pelas ruas.

No dia 03/10 eu pensei inicialmente em votar logo cedo, mas deixei para exercer meu direito por volta do meio dia, imaginando que iria encontrar a seção de votação esvaziada por se tratar do horário de almoço. Ledo engano.

Quando cheguei percebi a sujeira que se avolumava nas redondezas do local de votação. Muitos papeís deixados pelos cabos eleitorais, dos mais diversos candidatos, das mais diversas matizes ideológicas. Grandes filas nas seções eleitorais, e as pessoas trocando comentários entre si sobre os candidatos, o calor, a cervejinha de domingo, Deus, iradas pela obrigatoriedade do voto, futebol. Enfim, o comportamento padrão do humano quando está em filas quilométricas: observações cretinas e sem conteúdo, feitas apenas por quem não suporta o silêncio.

Depois de votar corri de volta para casa, fugindo do calor das ruas, da sujeira picotada em papeis espalhados pelas esquinas, dos comentários estúpidos das filas, da cervejinha e do pagode domingueiro. Ao chegar em casa, liguei a TV e o rádio, para acompanhar as notícias sobre o pleito eleitoral, como estava sendo o dia de votação, e as aguardadas pesquisas de boca de urna. Confesso que foi uma decisão imbecil minha de acompanhar a TV e o rádio, isto porque os apresentadores e comentaristas dos programas jornalísticos que cobriam a votação ficavam esticando uma notícia até não puder mais: “O candidato fulano votou pela manhã acompanhado do netinho”. “A candidata beltrana votou à tarde e seguiu direto para o comitê, a fim de acompanhar a apuração”. Ou pior, entrevistando eleitores anônimos na rua: o velhinho que não tem mais a obrigação de votar, mas insiste em exerce sua cidadania com orgulho; o adolescente de 16 anos que vota pela primeira vez e exibe com o orgulho seu título de eleitor.

As emissoras de rádio abriram seus telefones para a participação dos ouvintes, e a grandes maioria dos que participavam ao vivo da programação fazia comentários sobre o desrespeito à chamada “Lei seca” e a grande quantidade de sujeira nas ruas, provocadas pelos santinhos dos candidatos espalhados próximos aos locais de votação.

De fato, o que mais me chamou a atenção no dia da votação foram as sujeiras das ruas. Tal cenário de desorganização e imundície levou-me de volta a toda a campanha eleitoral, quando as imagens dos candidatos foram exaustivamente expostas na propaganda gratuita no rádio e na TV, em fotos e cartazes exibidos pelos cabos eleitorais pagos para ficarem horas à fio segurando bandeiras, sob sol e chuva. Fez-me lembrar de como era bom escutar aquelas promessas de um novo Brasil, onde a miséria não existiria, onde todos teriam segurança, educação e saúde pública e de qualidade. Confesso que eu achava tão bonito o guia eleitoral que às vezes me emocionava, meus olhos brilhavam e umas duas vezes verti lágrimas, tamanho o encanto que imagens de candidatos em favelas, abraçadas a criancinhas esquálidas e senhoras precocemente envelhecidas me suscitavam.

Então hoje, dirigindo-me ao trabalho, passei como de costume nas imediações do Parque 13 de Maio e da Câmara de Vereadores do Recife, vi um amontoado de crianças e adolescentes deitadas no canteiro central da av.Cruz Cabugá. Não eram oito horas da manhã, e as que não dormiam, estavam com uma lata de cola na altura da boca e do nariz. Dei-me conta que esta cena se perpetua há muito tempo, que sempre que passo por ali , aquelas crianças e adolescentes estão se drogando, jogadas ao relento, nas vizinhanças do poder público municipal legislativo. Dei-me conta da minha indignação com aquele cenário de miséria humana, com aquele retrato dantesco da pobreza e da falta de assistência do Estado àquelas criaturas. Percebi o quanto estou brutalizado com a indiferença que tomou conta de mim, frente ao sofrimento do outro. Deus, pensei, passo aqui todos os dias e não me dou conta disto? Como posso ser cúmplice, com a minha resignação, a este atentado à dignidade da vida humana? São apenas crianças, são adolescentes que já não tem perspectiva, que perambulam pelas ruas sem nenhum tipo de assistência. São seres forjados na violência das ruas, na violência da omissão do Estado.

Percebi, enfim, que aquelas crianças e adolescentes são apenas entulhos de nossa sociedade. São como os santinhos dos candidatos jogados pelas ruas no domingo eleitoral, com a diferença de que elas (as crianças e adolescentes) não nos incomodarem tanto quanto ver nossas ruas sujas de tantos papeis. Ali, expostas no canteiro central de uma das principais avenidas do Recife, ao lado do Parque 13 de maio e da Câmara dos Vereadores do Recife, são o lixo, que não se joga mais para debaixo do tapete, porque nossa indiferença já é o tapete. As sujeiras do pleito eleitoral vão sumir daqui há pouco. As belas promessas dos candidatos vão se tornar palavras ao vento. Mas aqueles seres que dormem nas ruas, que se entorpecem de cola e crak, vão continuar expostos, como fraturas e feridas que insistem em nos desconfortar. A miséria não desaparecerá. Daqui a dois anos teremos eleições municipais, e é possível então que o poder público municipal intervenha de alguma forma naquela cena, pois afinal de contas não fica bem para os digníssimos vereadores terem como vizinhos a falta de dignidade, a pobreza e o sofrimento.

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 05/10/2010
Reeditado em 05/10/2010
Código do texto: T2538811
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