O Portão

Ficava ali ouvindo o som provocado pela batida do vento no ferro do portão. Era outro portão e não mais o mesmo. A mania que as pessoas têm de reformar suas casas. Certas coisas não podem ser mudadas, pois elas carregam uma carga tão pesada de lembranças que as mudanças acabam destruindo. Não quero dizer que não haja mudanças necessárias. Há mudanças tão necessárias quanto a água é necessária para a vida. O muro de Berlim não existir mais é uma mudança necessária. Digo das mudanças que interferem com as entranhas do indivíduo e, no fim, não acarretam em nenhuma melhora individual e nem coletiva. Por que mudar algo que só vai afetar maleficamente um indivíduo? Essas mudanças são cobiçadas pelos velhos comunistas que não prezam pelo sentimento do indivíduo. Para eles apenas importa o coletivo e o coletivo é aquilo que eles se importam. Tudo que foge a agenda deles é besteira.

O vento soprava mais forte no portão que eu não conhecia. O portão que ocupava agora o espaço sagrado de minhas lembranças mais essenciais. Queria revoltar-me como os jovens de Berlim quando jogaram abaixo o muro da vergonha que separava irmãos. Queria armar-me como um soldado furioso que tenta superar as barreiras criadas pelos seus inimigos que tinham destruido sua cidade, sua casa, seus amores.

Há muito tempo que não recorria às manhas divinas. Há muito tempo que não pensava na grande maravilha divina. A memória. Pus-me a mercê da memória, esse instrumento invisível e tão real em nossa existência. Parece que a memória é um anjo de Deus que vive vagando sobre nós para que jamais esqueçamos das coisas mais fundamentais. Aquelas coisas que somos nós mesmos, que nos faz viver, que nos faz ter coragem. E a danada da memória transportou-me a um ano delicioso, 1988.

Vi na frente de minha casa um jovem com seu pai construindo uma calçada e mais adiante aquele portão que não existe mais na realidade, porém bastante vivo em minha memória. Nele havia uma bela jovem que olhava para ele. Aquele portão era algo transcendental entre aqueles jovens, pois fora feito para manter separação, mas ele controversamente, queria unir. Pude ver de novo os olhos dela, seu sorriso, seu jeito tão menina, tão linda. Pude sentir de novo o que senti naquele dia: o amor. Pela primeira vez o amor se apresentou em meu ser de maneira definitiva.

Quando voltei do passeio da memória, fiquei olhando aquela jovem dormir. Vinte e dois anos se passaram, o portão se foi, algumas pessoas se foram, a calçada foi refeita várias vezes, mas ali ainda estava seu sorriso, seu jeito tão menina, tão linda. E, novamente, o amor se apoderou de mim...

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 04/10/2010
Código do texto: T2537887
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