O sussurro 
                    de Francisco de Assis





          1. Sabedores de que sou, desde que nasci, um admirador incondicional de Francisco de Assis, amigos mais chegados perguntam-me, com tolerável insistência, como foi a morte do Poverello.
          2. Recordam, com indisfarçável espanto, que o santo seráfico, num belo poema, chamou a morte de irmã.
          3. Aproveito o embalo, e lhes digo, num desmedido e condenável cabotinismo, que conheço bem o poema de Francisco, e até os recito em italiano:
     Laudoto si, migsinores, per sora nostra, morte corporale, da quale nullo homo vivente poskappare". 

          4. Pensando bem, justifica-se a perplexidade de meus companheiros de lazer, diante do comportamento de Francisco, chamando a morte de amiga.
          5. Creio que ninguém, ou quase ninguém, gostaria de ter a morte como parenta; e parenta tão próxima.
          6. Eu, por exemplo, sou tanatófobo (o quê?); ou se preferirem, um necrófobo assumido. Não quero a morte nem como uma irresistível amante; quanto mais como uma irmã.
          7. Mas não estranho Adélia Prado tê-la chamado de "comadre", nos seu poema Campo-santo: "Na minha terra/ A morte é minha comadre."
          8. Interessante, noto, naqueles que frequentam minha modesta biblioteca, um ar de surpresa com o número de livros que tenho sobre São Francisco de Assis, o "patriarca dos pobres", como o chamou São Boaventura. 
          9. São livros de autores leigos - Níkos Kazantzaks, por exemplo,  - e de autores religiosos, entre eles, Frei Tomás de Celano, contemporâneo e o primeiro biógrafo do santo da Úmbria.
          10. É uma pequena estante franciscana.
          Com poucos livros, pouquíssimos, levando-se em consideração o muito que já se escreveu e ainda se vem escrevendo sobre o Pobrezinho de Assis.
          11. Mas o necessário para mantê-lo presente no meu gabinete de leitura, estudo e trabalho, onde passo a maior parte do dia, grande parte da noite, vez por outra, invadindo as madrugadas. 
          12. Esses livros contam, claro, os últimos dias de Francisco vividos na sua Assis, a encantadora cidadezinha da Itália, onde estive, faz aproximadamente um ano, e pela segunda vez.
          13. O último livro que adquiri - e li saboreando-lhes os parágrafos muito bem escritos - impressionou-me bastante, a começar pelo título - Francisco de Assiso Santo Relutante - que lhe foi dado pelo seu autor, o teólogo Donald Spoto.
          14. Um livro que "lança nova luz sobre Francisco, desde sua epifania espiritual diante de um crucifixo numa pequena igreja rural da Úmbria, até os fracassos e amargas decepções de seus últimos anos",  lê-se na orelha de apresentação. Recomendo sua leitura. 
          15. Mormente no momento em que a Igreja vai celebrar - dia 4 de outubro - os 784 anos da morte do Poverello, evento que, para alguns, teria ocorrido no dia anterior, ou seja, no dia 3 de outubro de 1226.
          16. O sussurro de Francisco deu-se horas antes de sua morte. Fechando esta página, direi qual foi. 
          17. Antes, alguns lances comoventes, registrados por seus biógrafos, que teriam acontecido nos dias e instantes que antecederam sua partida, num "voo feliz para Deus", como ressaltou Frei Tomás de Celano, seu irmão de hábito. 
          18. São muitos. Mas escolhi cinco. Talvez os que me dão a certeza de que não amolarei, ainda mais, o caro (e-) leitor, obrigado que será a comparecer, nas próximas horas, a uma tal "cabine indevassável". É tempo de eleição.
          19. Vamos lá.
     1 - Clara e Francisco. 
     Doente, a freirinha, o grande amor do Poverello, mandou-lhe um recadinho, lamentando não poder acompanhar a procissão que o levaria, moribundo, de Assis para a Porciúncula. 
     E ele, acariciando-a, garantiu-lhe, que antes de sua morte, ela o veria. E cumpriu a promessa: a seu pedido, seu corpo, ao "ser transportado para ser enterrado" fez uma parada em São Damião.
     E de uma janelinha do seu Convento, Clara de Assis se despediu do seu dileto amigo e incomparável ídolo.
     2 - Francisco e as cotovias.
     Estes pássaros, que um dia chamei de passarins franciscanos, sempre acompanharam Francisco. Ele "as amava devotadamente e as ficava contemplando". 
     Nos seus últimos momentos, contam os livros, "pássaros chamados cotovias esvoaçavam por sobre o teto da cabana onde ele jazia, fazendo círculos e cantando". 
     Nada mais do que a doce homenagem ao amigo dos animais, desde o lobo que aterrorizava Gúbbio, às inocentes cotovias que alegravam os beirais da Porciúncula.
     3 - A nudez de Francisco.
     Aos confrades, foi este o seu pedido, na manhã do dia 3 de outubro de 1226, quase morrendo: "Quando virdes que cheguei ao fim, colocai-me nu no chão, e deixai-me ali pelo tempo necessário para a minha última caminhada."
     E seus irmãos cumpriram, à risca, o seu pedido, colocando-o, inteiramente desnudo, no chão duro de sua cela fradesca. 
     Era a segunda nudez de Francisco, depois que ele, perante o bispo de Assis, se desfez de suas vestes, numa despedida dramática e apoteótica da vida mundana, que ele curtiu, pra valer, antes de sua conversão. 
     4 - Francisco e Assis.
     Há muitas versões sobre sua despedida de sua Assis amada. Trago para esta crônica a versão dada por um leigo, Níkos Kazantzaks, no seu livro O Pobre de Deus.
     Versão romanceada, claro. Achei-a, porém, como aquela que melhor se encaixaria nesta  crônica, que se quer seráfica. 
     Escreveu o autor de Zorba, o grego: "Adeus Assis, minha mãe - murmurou -.  Louvado seja, Senhor, por esta graciosa cidade, pelas suas casas, os seus habitantes, os parrerais, os vasos de manjericão e a manjerona colocados sobre os parapeitos. 
    - Ah! Se eu pudesse tomar-te toda nas minhas mãos, Assis, e depor-te aos pés do Altíssimo! Mas não posso, minha bem-amada, adeus!"
     E finaliza Kazantsaks: " Rompeu em pranto, e a cabeça descambou-lhe sobre o peito."
     Oh! a linda Assis... que, chegando de trem, a descobri, lá no alto, pendurada "nos flancos do monte Subásio", e  em silêncio, fiz uma oração...
     5 - Finalmente, o sussurro de Francisco.
     Ou, talvez, agonizante, suas últimas palavras: "Fiz o que me cabia." Um sussurro que não foi abafado pelo tempo. Ecoa vivo. 

          20. Decorridos 784 anos de sua morte, é de se indagar: que fez Francisco? Resumindo, diria que amou a Natureza; deu exemplos comoventes de humildade; praticou a santa pobreza; e pregou a PAZ , deixando-nos o seu "Paz e bem!".     
          21. Agindo desta maneira, ele aproximou-se  do divino, numa "perfeita adesão a Cristo", como assinalou Tomás de Celano.
     Não é por acaso que Francisco de Assis, o santo do Milênio, é chamado de Alter Cristus, ou seja, outro Cristo.
      
Nota - Foto, por mim sacada, da imagem que mantenho na minha mesa de trabalho.
               
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 01/10/2010
Reeditado em 15/10/2020
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