Mulher mineira.
 
              Uma toalha bordada com linha branca. Sobre ela uma cumbuca de tutu bem amassado com umas rodelas de ovo cozido em cima, uma porção de couve rasgada, uma tigela de arroz soltinho, uns torresmos bem passados, um copinho de vidro cheio da boa cachaça mineira.
               Na minha frente uma mulher bonita, cabelos soltos, olhos atentos. Vez ou outra comprimia os lábios, passava a mão nos cabelos, levemente sorria dizendo:

               - Eu fui criada em família normal, religiosa, com mãe, irmãos e um pai severo.
              - Tinha condições de uma boa escola, bons amigos, mas com poucas liberdades.
              - Os horários rígidos. Roupas comedidas. Quase nada de pintura. Quase um convento.

               Sorvo aquela cachaça que me desce queimando. É forte, tem gosto curtido de madeira, levemente amarelada, tem o suor da cana e a alma de todos os cortadores.

               - Até dos 16 pra 17 anos eu aceitava as ordens sem questionar, mas a força da juventude estimulada pelos hormônios e pelas conversas de amigas me fizeram curiosa. Quis namorar. Naturalmente escondido de meus pais. Um toque de mão aqui. Um beijinho acolá. O vulcão do amor estava se contendo. Aumentava o desejo, a curiosidade, o anseio da liberdade.

               A televisão do lado mostrava um acidente numa mina no Chile. Homens barbudos, maltrapilhos, esfomeados, sujos, de olhos arregalados estavam ali, mais de 30 dias enfiados em galerias bloqueadas por deslizamentos.

              - Meu primeiro namorado era minha luz. Tudo que sonhei em viver e fazer ele me propunha com alegria. Minha cabeça voava nas forças da liberdade. Eu estava feliz. Os horizontes eram arco-íris. A vida, agora diferente, tinha mãos, dedos, saliva e fantasias.
               - O vulcão explodiu e com ele todas as regras e avisos da vida determinada pelos meus pais e pela igreja foram como lavas quentes inundar nossos corpos apaixonados.

               Sobre a mina, dizia na TV, como ironia da vida, se multiplicava a chegada de parentes na esperança de retirá-los literalmente do fundo da terra. Incapazes de fazerem alguma coisa oravam.
                Adereços, cruzes, bandeiras, barracas, e todos unidos lá para salvá-los.
                Três brocas dia e noite fazendo furo no coração da terra. Estavam buscando um meio de retirar em até 150 dias, aqueles 33 homens que tinham deixado suas famílias em casa e se afundando na mina São José para trabalhar.

                - O casamento era a porta de saída da opressão familiar, o fogo da paixão era o combustível para impulsionar nova vida.
               - O casamento não durou tanto, mudaram as regras rígidas, mudaram as datas, mudou o homem, mas não mudou a liberdade. Até creio, piorou. A liberdade tinha sido um sonho que agora me fazia acordada.
 
               Vamos produzir uma cápsula que irá trazer através desses furos, um a um cada mineiro que lá estão lutando bravamente contra o frio, fome, doenças e medo.
               Pelo furo de 70 cm deslizarão cápsulas de vida que em 45 minutos içarão com segurança e razoável conforto um mineiro preso.
               Serão mais 45 minutos de sonho que poderão também acabar em pesadelos. Para quem quer viver qualquer minuto é uma hora, qualquer hora é uma eternidade.
               A vida oprimida por terra ou ordens é tão triste quanto um sonho desfeito.

              - Conheci outros homens, mas fiquei presa naquele que me prometeu cores, qualquer aproximação que tenho com outro, qualquer perspectiva de novo amor, ele aparece. Aparece e me deixa dele. Deixa-me incapaz de reagir e cedo. Sinto-me sempre como um mineiro preso no fundo da terra esperando alguém me salvar.

              Uma vila se formou ali, em cima da montanha que prende seus maridos, filhos e irmãos mineiros. Acampamento Esperança é uma reunião de mineiras que amam, que acreditam, sofrem e vivem a vontade e tê-los de volta nos braços.

              - Eu preciso da magia de uma cápsula dessas.
              - Preciso me libertar.

              Peço um café.
              Adoçante por favor.
              A conta.