A Escuridão Sacra da Alma
Era mais um típico domingo outonal acarauense. O silêncio gotejava dos diálogos fúteis que exalavam da cozinha e da sala, e ensurdeciam meu estômago numa náusea angustiante de tantas banalidades repulsivas, fazendo-me vomitar na privada a qual cada ser humano é desde sua concepção. Tranco-me no banheiro. Exceto eu, e a sensação de minha vacuidade gritante em meu corpo, sinto que nada mais existe.
Um céu azulado de monotonias e diversões repetitivas chove pelas ruas, praias, bares, motéis, relacionamentos... Sinto que já não pertenço a este mundo, e nem a outro mundo qualquer. Sinto que tudo em meu ser está naufragado incomensuravelmente no Mar plúmbeo da Perdição, e não existe nenhum meio de resgatar nada, e nem adianta tentativas de renascimentos psíquicos e conceituais, e nem visar me preencher com novas argumentações, desejos, mudanças de foco óptico e hábitos, ou outras formas de paliativos.
Nunca houve, e nem haverá, salvação para nenhum de nós. Nosso circo de mentiras ilusórias e utopias religiosas. (Vejo Buda, Jesus e Maomé hibernando no Reino da auto-aniquilação do Esquecimento). Sinto que já não possuo mais sentimentos para sentir. Circula em meu sangue simplesmente sílabas e palavras mortas infladas de símbolos e significados fictícios. Subitamente, uma gargalhada sádica floresce em meus lábios, e zombo e desdenho de tudo isso, e de todos.
Pulo dentro de mim, e enquanto minha mão direita masturba meu pênis, ambos os dois pensando em lindas crianças sendo estupradas por alguns de meus demônios divinos, minha alma chora suplicando por lágrimas que evaporaram de meus remorsos e arrependimentos decapitados há séculos. Meu Pênis ejacula sementes de morte no piso frio do banheiro. A Mão e o Pênis exultam de prazer, contudo o olhar de minha mente confronta-os, e uma indiferença onipresente inunda minha consciência.
Retiro a gilete do bolso. Faço dois cortes superficiais de uns dezoito centímetros em meu braço esquerdo. O pensamento de me tornar o aniquilador completo da humanidade pousa em meu corpo tão engaiolado, enquanto meu braço lacrimeja o sangue profético de meus pecados imaculados por várias partes de meu corpo, expiando-me de todas as divindades, messias e contatos humanos. Assassinar friamente a toda essa corja denominada de “civilização”, e depois ir morar na floresta completamente sozinho me faz ter calafrios de êxtase; de uma êxtase que somente o abismo de oceanos áridos que sou pode compreender em toda a sua extensão hermética e intrínseca.
“Sou”? De onde me veio tal ilusão a fim de afirmar e definir o que “eu sou”? Este meu “Eu” é o efeito de uma combinação única de incontáveis circunstâncias que se recombinam a cada instante, a cada lance de dados do acaso. Não é, portanto, um centro de comando fixo, mas um personagem fictício, construído por uma série de características que se relacionam entre si. Todos os elementos que se acredita conferir realidade ao tal “eu”, revelam-se puramente fictícios, totalmente incapazes de definir satisfatoriamente o que seja “eu”, como máscaras fixadas, sobrepostas, que nos levam a imaginar que por trás delas há algo como um “rosto real”, um ser “a princípio” fixo, que chamamos “eu”.
Sonho acordado em ser a Mulher profanada por todos os devassos, maníacos, viciados, e funcionários públicos que levam suas esposas, maquiadamente vazias e desprezíveis, à igreja aos sábados.
Todos os neurônios, células, átomos e espermatozóides de meu corpo entram em ebulição orgíaca ao me verem, hipoteticamente, incendiando igrejas, escolas, e parlamentos com todos os seus arquétipos bípedes ali defecados em seus devidos recintos, pela mão parturiente do Absurdo. E nestas sensações e pensamentos tão sagrados para minha alma fragmentada, acendo um cigarro burguês e o copulo em meus lábios. (Por que não encerrar de uma vez por todas a teatralidade dantesca e ridícula de “existir” com uma dose homérica de estricnina? A janela da auto-supressão me consola com sua disponibilidade sempre constante e aberta para o meu ser.)
Fora de “mim-eus” não há universos, galáxias, nem planetas, nem linguagens; há apenas as ondas inaudíveis do Nada e do Vazio a ecoarem numa mudez cosmopolita no abismo de oceanos áridos que eu penso que sou. Apago enfim a guimba do cigarro ainda vivo em meu tórax. A dor que fumega de meu corpo é irrisória e quase nula diante de tantos corpos que, enforcados, contorcem-se dentro de mim. E todos eles são partes inerentes e insofismáveis de meus labirintos internos. O sol de meu ser jaz sepultado em estado de putrefação tanto interno quanto externamente. Vozes infinitas que nasceram de meu âmago olham-me estarrecidas para a noite inapagável que se enraíza e cresce avassaladoramente em meu íntimo.
Saio do banheiro, e mais uma pergunta martela-me o cérebro: a quem terei de machucar, ou desvirtuar, ou engodar, ou me ajoelhar, ou idealizar, ou amar titanicamente, a fim de que esta náusea entediante e dolorosa de não-ser sendo-me desapareça por alguns instantes do cosmo orgânico de minha alma desgramatizada?
Gilliard Alves Rodrigues