Como é duro trabalhar...

Trabalhar é muito duro. E não o é por conta da força mecânica que nosso pequenino corpo precise empregar, ou por causa da minieletricidade que o velho cérebro gere pra resolver as tarefas do cotidiano. Nada disso. Trabalhar é duro porque castiga a alma.

Essa ausência (talvez pouco notada) de um cronista e sua arte, por exemplo, deve-se a um período de intenso trabalho policial. Mas também não é o crime que castiga alma (salvo a do criminoso e as das vítimas). Nem tampouco a dureza desta cidade gris – meu elemento como policial. Não. Nada disso. O que remói é o contado com os demais trabalhadores. O que cansa, o que faz a seiva da vida vazar, é essa mediocridade generalizada, esse acotovelar-se, essa concorrência insana e improdutiva; o que dá no saco é, por exemplo, ter de conviver com esse tipo (de cima pra baixo da escala hierárquica) de gente:

a) O Pseudo-Culto: está em nosso comando por antiguidade e por aglutinar conhecimentos que, num joguete de mudar a perspectiva, vende como profundos, mas que são rasteiros quenem grama. Esse é difícil porque rebate argumentos sensatos com abstrações técnicas ininteligíveis, mandando você fazer exatamente o que propusera, mas tomando pra si os direitos autorais. Por exemplo: “veja bem, sua idéia é boa, mas, num curso de 340 horas-aula que fiz em São Paulo, aprendi que, em vez de colocar o cadarço no sapato, como você propôs, é melhor colocar o sapato no cadarço, como eu estou dizendo. Faça desse jeito e verá que dá certo”.

b) O Amigo dos Amigos: fatiou o trabalho entre pessoas que, pelo fato de lhe serem amigas, acha que são competentes. Pensa: “quem é meu amigo, quem gosta de mim, não pode ser incompetente!”. Então, quem quer que avance nesse terreno doado (ou invadido), é corpo estranho, e será repelido como o corpo repele um órgão implantado, ainda que, sem esse órgão, não sobreviva.

c) O Sabe-Tudo: porque tem 30 anos de prática profissional, acha que uma idéia sua só pode ser contestada por quem tenha, pelo menos, 31! Como, em regra, quem já tem 31 está aposentado, e tá nem aí pra contestações, sua opinião é onipotente. Mesmo ante a obviedade de uma proposição superior àquela que ele sedimentou ao longo desses desgraçados 30 anos, o infeliz não se dá por vencido, e taca: “ah, você diz isso porque ainda não tem experiência. Daqui a 30 anos, quero ver se você me diz o mesmo!” Daqui a 30 anos...

d) O Fui-Eu: esse fica lá, no comando, olhando o trabalho dos outros. Não tem prática, nem talento, nem brilho, mas faz mais questão da imagem que da verdade. Quando alguém realiza um trabalho de valor, ele se aproxima, em feitio de ave, que pode se dar: 1. Como urubu: vai bicando o trabalho, degustando, e de repente toma-o para si, sutilmente, encoberto por sua capa preta – por nojo à podridão, o autor verdadeiro afasta-se e deixa-o levar o naco; 2. Como carcará: dá uma peneirada sobre o trabalho, depois mete as garras nele e ponto. Obrigado. Agora é meu; 3. Como colibri: vai beijando o trabalho, lambendo-o, e de repente, delicadamente, destaca-se mais que a “flor do trabalho”; 4. Como “pelanco”: está sempre, no ninho (ou birô), de bico escancarado, aos desesperos, implorando engolir o trabalho dos outros – meio eficiente, mas irritante; 5. Como papagaio (de pirata): fica de longe, nada faz, não ajuda (e às vezes atrapalha), mas, na hora do flash, pousa como que do nada pra compor a equipe de trabalho.

e) O Democrata: enquanto você lhe obedece e concorda com suas idéias, é um perfeito democrata (“é isso que eu digo: trabalho se faz em equipe, ouvindo a opinião de todos!”); uma vez contrariado, mete-lhe o dedo, às ameaças, acusa-o de insubordinado e insinua transferi-lo (“deu agora de se rebelar! Pois saiba que, sem disciplina, nada anda!”)

f) O Tabacudo, Tabaco-Leso ou Aluado: inapto à reflexão, defende com vigor as idéias das figuras acima elencadas. Anticriativo por natureza, equivale a um pitbull do trabalho: “isso sempre foi assim e vai continuar sendo. Quem disse que de outro jeito é melhor? Que números? Que estatísticas? Desde quando números valem mais que uma ordem?!”.

g) O Hippie: sabe nem onde está pisando, mas, porque ocupa um cargo estratégico, é adulado pelas demais classes que, na primeira chance, mandam-no de volta a Woodstock.

h) O Nota de R$ Vinte e Cinco: nutre profunda inveja do seu trabalho mas, com é um sujeito limpo e asseado, elogia-o, bate-lhe nas costas. Vaidoso ao extremo, a perder prefere que todos nivelem por baixo; se não consegue destacar-se (o que é quase regra, pois está muito ocupado da vida alheia) tenta fazer com que todos desçam pra fervura, como faz o caranguejo na panela de água quente, puxando pra baixo os camaradas que tentam safar-se do pirão. Às vezes é até talentoso, mas gasta tanta energia olhando pros lados que não vai pra frente.

i) O Cronista-Fuleragem: revolta-se contra esse estado de coisas, cria uma crônica que, se muito, será pregada no armário roto de alguma repartição, e recebe elogios literários que vão da letra “a” à “h”. Todavia, talvez (repito: talvez) alguém compreenda que é objeto do texto, e então dificilmente promoverá o coitado.

Pois é, bato na tecla: não é o trabalho em si, são as pessoas – uma minoria delas, mas que faz estrago.

Daí (delirando, concluo) o sucesso imemorial do samba e outras tantas formas de fuga à beleza, à meditação e à vadiagem.

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