O Lado Real e o Lado Onírico da Segunda-Feira
Acordo com uma voz estranha me chamando pelo nome. Eu abro o olho e ganho lambidas e mais lambidas de um lindo labrador. E ele me diz: Acorda, tem um dia lindo te esperando lá fora. Eu me levanto e o telefone toca. O labrador traz o maldito aparelho pra mim e diz: é uma notícia boa. Que notícia poderia ser boa numa manhã de segunda-feira chuvosa e fria? É meu chefe no telefone. Diz que vou trabalhar só a metade do expediente, e todas as horas serão contadas como hora-extra. Cristo, como assim? E labrador fala: eu não disse? Vou pro banheiro e o chuveiro que antes não esquentava está numa temperatura que deixa o banho com a impressão de se estar com metade do corpo no próprio paraíso. O café está posto na mesa, e não é o pão amanhecido que amanheceu no dia anterior e que eu tenho que amassar na frigideira pra ficar tragável; é tudo fresco, colorido, frutas e sucos e queijos e café. E o labrador girando panquecas na beira do fogão. Saio pra rua e pára de chover imediatamente e as nuvens viajam para agourar e molhar outro lugar e o sol me diz olá. Abro o portão e um cavalo que passa trotando alegre me dá bom dia. "Dia", respondo eu. O Seu Ademar, taxista, se oferece pra me levar até meu trabalho. De graça. Por pura cortesia, não sei ao certo. Não há horário político no rádio e o trânsito é suave até demais. Me despeço do Seu Ademar e constato que é a primeira vez nos últimos dois anos que eu não vou chegar atrasado. Uma borboleta pousa no meu ombro e se apresenta: Oi, meu nome é Tally. Eu digo "Oi Tally. Como você é linda! Fiquei sabendo que quando uma borboleta pousa no ombro de uma pessoa significa que ela terá sorte. É verdade?" e "Sim", ela me responde, "é verdade, hoje é o seu dia de sorte". Acredito. Mesmo. Meu chefe me abraça e me fala que eu não preciso trabalhar, só cumprir o meio-horário. Mas eu posso preencher o tempo ganhando massagem dos ceguinhos massoterapeutas (?). Ou assistir Youtube no computador dele. Ou quebrar as vidraças, acender o isqueiro perto daquelas torneirinhas anti-incêndio, ou cantar a namorada dele, ou deletar todas as planilhas de Excel da empresa ou riscar seu carro com um prego enferrujado. E o dia passa calmo, em paz, a linda garota me sorri, meus textos fluem, a água é maravilhosa e o ar está puro.
Então eu acordo.
Acordo assustado com o despertador tocando sua música irritante e sinto cheiro de merda de cachorro e levanto e bato com a cabeça na cama de cima da beliche e travo as costas na hora de levantar da cama e piso numa bolinha de gude e dói e eu bato o dedinho no pé da cama e depois piso na merda do cão sarnento que caga sangue há uma semana e tenta me morder toda vez que eu lhe dou as costas. O chuveiro queima no meio do banho e eu vomito, porque ontem bebi mais do que devia e mais do que devi nas últimas oito encarnações e vomito novamente e o vômito tem milho, beterraba, cerveja, vinho e logo sobe um cheiro azedo da fermentação e meu fígado me fode cada vez mais e mais e o telefone toca e meu chefe quer que eu chegue mais cedo e a chuva cai de forma torrencial e o carro do Seu Ademar passa à milhão na poça d'água e molha toda a perna esquerda daquela única calça jeans que eu tenho e tô usando há dois meses sem lavar e o ônibus tá cheio e quebra e tenho que pegar outro que veio cheio e encheu mais ainda com as pessoas que lotavam aquele que tinha quebrado e aquela mina caolha-banguela-careca que tem o mesmo cheiro do meu vômito matinal sorri pra mim enquanto a Deusa da beleza feminina simplesmente me ignora e/ou me olha me olha de alto a baixo com um ricto de desgosto nos lábios. Um pombo caga no meu ombro, estou meia hora atrasado e tem uma pilha de papéis na minha mesa com problemas que deixariam Einstein com os pêlos do dedão pé em pé. E ele, o chefe, é um fariseu cretino otário babaca idiota pau no cu filho da puta que me odeia e traz mais pilhas e pilhas de papés que são da responsabilidade DELE e eu vou até o banheiro e vomito novamente e minha cabeça dói e meu fígado me destrói e eu tenho uma fome de três mendigos da Sé e não me recordo a última vez que ingeri alguma coisa que costumam chamar de "alimento". Abraço a privada, boto meus tesouros estomacais pra fora, dou descarga, assôo uns grãos de arroz e saio do banheiro e aquele puxa-saco desgraçado me dá dois tapinhas nas costas e diz: BOM DIA!
Então eu acordo.
Qual é a sua realidade?
Ouvindo: Deluxe Trio - À Minha Segunda-Feira