MEU ROSTO DE NINGUÉM
MEU ROSTO DE NINGUÉM
Burguesa por formação e fado, ao longo de quase vinte anos e à sombra de um outro, antípoda de quase tudo que aqui direi, partilhei teu destino de anarquista, tua mansarda, teus rumos alineares, teu compromisso com o destino da Espécie, tua condição de apátrida, tuas múltiplas línguas, tua estirpe não gregária, teus deslaços de família, tua solidão essencial.
Durante quase duas décadas segui contigo (sempre seguida pela sombra do outro) e desenraizada de tudo a que pensara pertencer: o percurso regular dos relógios, o trajeto uniforme dos afetos, a partilha das datas comemorativas - casamentos, separações, sucessão de gerações; as heranças, as desafinidades eletivas, as cordialidades de encomenda para se ficar bem nos álbuns da família, da família a permanecer intocada para sempre.
A vida torceu-nos os rumos todos, na tua vida, na minha vida, na vida do outro e na dos todos a nós ligados. A despeito de tudo, permaneceste fiel a ti mesmo, mais do que nunca fiel ao teu ideário, mais livre do que nunca na tua condição de apátrida, de ser sem raízes, de homem só de riquezas mentais acumuladas ao longo da vida pelo lado de fora dos muitos muros do Sistema.
Eu, por minha vez, voltei para o tempo regular dos relógios, dos passos medidos, dos textos lineares, da uniformidade dos afetos. Ficaram-me de ti... e do outro, teu antípoda-complementar, de vós, em suma, cara-coroa de uma mesma moeda, a estranheza absoluta diante dos múltiplos e incompatíveis mundos e a certeza do mais perfeito não pertencimento a quem quer que seja e ao que quer que seja, neste meu rosto de agora, este meu rosto de NINGUÉM, rosto por cujo aparecimento não posso responsabilizá-lo, nem ao outro, nem a ninguém, talvez sequer a mim mesma; espécie de rosto nascido sem autor, efeito sem causa, ser-fruto de geração espontânea parecendo mundo sem qualquer esperança da existência de algum Deus a quem fosse possível pedir, senão outro rosto, ao menos a ausência de todos os espelhos.
Original na noite de 13 de outubro de 2009, com alguma alteração, no título, e aqui e ali no texto, nesta noite de 25 de setembro de 2010.