TEMPO DE MANGUAÇA
E o tempo vive a correr ao meu redor. Marcando as horas e sempre me lembrando que continua a correr. Nem me dá folga para uma preguiça e quando tomo tal liberdade, a sua revelia, fica cutucando meu ombro, martelando minha consciência, sempre me dizendo que o meu tempo na realidade não é meu. Mesmo quando, noutro dia, fiquei sentado numa ponte, sobre um pequeno riacho, por onde corriam vagarosamente águas frias e límpidas, onde meus pés descansavam balançando cautelosamente, qual pêndulo do relógio do tempo, mesmo assim ele continuava a correr e a marcar, cronometrar a minha vida que corria, muito mais veloz que as águas do riacho.
E mesmo quando os pensamentos fugiam dos pés, das águas que passavam mansas insistentes, criavam asas, levantavam vôo e subiam a caminho do passado, mesmo assim ele não me dava folga. Seguia grudado em minha garupa, feito uma mochila, acompanhando meu passeio pelo tempo outro, bem mais menino, bem mais viçoso, ainda em tenras horas, mas já impertinente e implicante comigo.
Tempo danado esse meu! Mesmo quando vago em viagens pelo infinito, lá onde o vácuo deveria ser absoluto e nada deveria existir que não fossem meus pensamentos, mesmo lá, o safado me persegue, fica grudado em mim, sem folga e fica cutucando meu fígado, fisgando meu estômago e me lembrando das horas, fica me rememorando e lembrando que ele existe, que ele tem pressa e que não vai me deixar relaxar.
Mas outro dia, depois de muito pensar, de andar em curvas, fazendo que ia e não ia, fazendo que voltava e indo, nas mais diversas e vãs tentativas de driblá-lo e ele me seguindo e rindo das minhas peripécias, finalmente me ocorreu uma idéia fantástica de enganá-lo. Pelo menos para que ele me desse um tempo, só para mim, sem a sua inconveniente e fatídica companhia.
Entrei num bar por uma porta. Lá rapidamente pela outra e voltei a entrar. Fui direto para o banheiro, tranquei a porta (aproveitei e fiz um xixi) e depois de algum tempo abri a porta bem devagarzinho, sorrateiramente e espiei. Nada. Ele não estava. Ufa. Sai, pé ante pé, e quando fiz a curva para voltar ao salão do Bar, lá estava ele num canto, olhando com um sorriso cínico e apontando o pulso. Estás perdendo tempo, comunicou. Estou ligadíssimo. As horas não param. Perdesses tempo seu ...........
Daí não me restou outra coisa. Já que estava ali, sentei num daqueles banquinhos do balcão, alto, desconfortável, de bar de periferia, olhei as prateleiras e ordenei. Uma dupla daquela lá, exclamei, apontando na prateleira uma cachaça cuja marca nunca tinha visto.
O cidadão, gorducho, barba por fazer, faltando um dente bem na frente, todo despenteado e uma ponta da camisa par fora da calça, foi até uma pia imunda, torneira de PVC já escurecida pela poeira incrustada, pegou um daqueles copos martelado, abriu a torneira, deixou correr um pouco de água, virou, sacudiu um pouco e trouxe até o balcão. Virou de costas, levantou o braço para alcançar a garrafa da cachaça que ainda estava na prateleira também empoeirada, subindo a camisa e parecendo um pedaço da bunda gorda e feia. Cheio, pergunta. Cheio chega, respondi. E ele encheu até a boca. Dois reais, disse alto, forte, decidido.
Peguei o copo, olhei com um pouco de temor, mas ao mesmo tempo lembrei que era cachaça e cachaça mata tudo, mesmo bactérias de pia. Com o copo na mão, olhei de canto de olho o tempo encostado na parede me olhando ainda daquela forma vigilante e repressiva. E quando ia levando o copo na boca, ele foi se espremendo, espremendo, contorcendo-se como se estivesse horripilado. Bebi tudo, inteiro, num só cole. Aquilo foi descendo pela garganta e ardendo, queimando, queimando e descendo e quase que instantaneamente a cabeça começou a ficar um tanto zonza. Mais zonza.
Eu estava mesmo decidido. Rebelde, ousado. Tirei a carteira do bolso, peguei uma nota de cinco, pus no balcão e ordenei. Mas uma e pode ficar com o troco. O cidadão sorriu com a gorjeta, vi o buraco na frente da boca e vi que derramou mais e mais cachaça no mesmo copo, até a borda, chegando a derramar um pouco no balcão de madeira fedorenta. Virei de novo e me arquei no banco. Olhei no canto onde o tempo deveria estar e não o vi mais. Não estava. Caramba!!!!! Não estava. Assustou-se e escafedeu-se. Deu certo! Finalmente deu certo.
Claro que passei um mal bocado. A dita cachaça de garrafa de pet deu-me até azia. Nem sei quanto tempo passei ali até curar a tonteira e recobrar a plena lucidez. Não lembro. Ainda bem. Bem mais tarde, quando saí, cheguei à calçada e peguei a rua, foi que vi que o atrevido e grudento meu tempo, meu sombra, lá estava me esperando, sentado no muro, do outro lado.
Mas consegui ficar pelo menos um tempo, quanto não sei, sem o tempo a me vigiar. E exatamente por isso que vezes em quando volto a um bar, não no mesmo, nem para beber a mesma cachaça, mas para apreciar uma boa manguaça. E o tempo, já mais domesticado, nem entra, fica do lado de fora, sentado em alguma sombra. Pelo menos nessas horas eu fico livro dele e da sua impertinência.
Para quem nunca tem tempo de ficar sem o tempo lhe cutucando a responsabilidade, lembre que somente uma boa cachaça, um bom whisky, ou seja lá o que for de bom e ardente, para deixar o tempo um pouco que seja sem lhe cutucar o fígado. A cachaça até pode latejar o danado do fígado, mas o tempo com certeza vai lhe dar um folga.
E o tempo vive a correr ao meu redor. Marcando as horas e sempre me lembrando que continua a correr. Nem me dá folga para uma preguiça e quando tomo tal liberdade, a sua revelia, fica cutucando meu ombro, martelando minha consciência, sempre me dizendo que o meu tempo na realidade não é meu. Mesmo quando, noutro dia, fiquei sentado numa ponte, sobre um pequeno riacho, por onde corriam vagarosamente águas frias e límpidas, onde meus pés descansavam balançando cautelosamente, qual pêndulo do relógio do tempo, mesmo assim ele continuava a correr e a marcar, cronometrar a minha vida que corria, muito mais veloz que as águas do riacho.
E mesmo quando os pensamentos fugiam dos pés, das águas que passavam mansas insistentes, criavam asas, levantavam vôo e subiam a caminho do passado, mesmo assim ele não me dava folga. Seguia grudado em minha garupa, feito uma mochila, acompanhando meu passeio pelo tempo outro, bem mais menino, bem mais viçoso, ainda em tenras horas, mas já impertinente e implicante comigo.
Tempo danado esse meu! Mesmo quando vago em viagens pelo infinito, lá onde o vácuo deveria ser absoluto e nada deveria existir que não fossem meus pensamentos, mesmo lá, o safado me persegue, fica grudado em mim, sem folga e fica cutucando meu fígado, fisgando meu estômago e me lembrando das horas, fica me rememorando e lembrando que ele existe, que ele tem pressa e que não vai me deixar relaxar.
Mas outro dia, depois de muito pensar, de andar em curvas, fazendo que ia e não ia, fazendo que voltava e indo, nas mais diversas e vãs tentativas de driblá-lo e ele me seguindo e rindo das minhas peripécias, finalmente me ocorreu uma idéia fantástica de enganá-lo. Pelo menos para que ele me desse um tempo, só para mim, sem a sua inconveniente e fatídica companhia.
Entrei num bar por uma porta. Lá rapidamente pela outra e voltei a entrar. Fui direto para o banheiro, tranquei a porta (aproveitei e fiz um xixi) e depois de algum tempo abri a porta bem devagarzinho, sorrateiramente e espiei. Nada. Ele não estava. Ufa. Sai, pé ante pé, e quando fiz a curva para voltar ao salão do Bar, lá estava ele num canto, olhando com um sorriso cínico e apontando o pulso. Estás perdendo tempo, comunicou. Estou ligadíssimo. As horas não param. Perdesses tempo seu ...........
Daí não me restou outra coisa. Já que estava ali, sentei num daqueles banquinhos do balcão, alto, desconfortável, de bar de periferia, olhei as prateleiras e ordenei. Uma dupla daquela lá, exclamei, apontando na prateleira uma cachaça cuja marca nunca tinha visto.
O cidadão, gorducho, barba por fazer, faltando um dente bem na frente, todo despenteado e uma ponta da camisa par fora da calça, foi até uma pia imunda, torneira de PVC já escurecida pela poeira incrustada, pegou um daqueles copos martelado, abriu a torneira, deixou correr um pouco de água, virou, sacudiu um pouco e trouxe até o balcão. Virou de costas, levantou o braço para alcançar a garrafa da cachaça que ainda estava na prateleira também empoeirada, subindo a camisa e parecendo um pedaço da bunda gorda e feia. Cheio, pergunta. Cheio chega, respondi. E ele encheu até a boca. Dois reais, disse alto, forte, decidido.
Peguei o copo, olhei com um pouco de temor, mas ao mesmo tempo lembrei que era cachaça e cachaça mata tudo, mesmo bactérias de pia. Com o copo na mão, olhei de canto de olho o tempo encostado na parede me olhando ainda daquela forma vigilante e repressiva. E quando ia levando o copo na boca, ele foi se espremendo, espremendo, contorcendo-se como se estivesse horripilado. Bebi tudo, inteiro, num só cole. Aquilo foi descendo pela garganta e ardendo, queimando, queimando e descendo e quase que instantaneamente a cabeça começou a ficar um tanto zonza. Mais zonza.
Eu estava mesmo decidido. Rebelde, ousado. Tirei a carteira do bolso, peguei uma nota de cinco, pus no balcão e ordenei. Mas uma e pode ficar com o troco. O cidadão sorriu com a gorjeta, vi o buraco na frente da boca e vi que derramou mais e mais cachaça no mesmo copo, até a borda, chegando a derramar um pouco no balcão de madeira fedorenta. Virei de novo e me arquei no banco. Olhei no canto onde o tempo deveria estar e não o vi mais. Não estava. Caramba!!!!! Não estava. Assustou-se e escafedeu-se. Deu certo! Finalmente deu certo.
Claro que passei um mal bocado. A dita cachaça de garrafa de pet deu-me até azia. Nem sei quanto tempo passei ali até curar a tonteira e recobrar a plena lucidez. Não lembro. Ainda bem. Bem mais tarde, quando saí, cheguei à calçada e peguei a rua, foi que vi que o atrevido e grudento meu tempo, meu sombra, lá estava me esperando, sentado no muro, do outro lado.
Mas consegui ficar pelo menos um tempo, quanto não sei, sem o tempo a me vigiar. E exatamente por isso que vezes em quando volto a um bar, não no mesmo, nem para beber a mesma cachaça, mas para apreciar uma boa manguaça. E o tempo, já mais domesticado, nem entra, fica do lado de fora, sentado em alguma sombra. Pelo menos nessas horas eu fico livro dele e da sua impertinência.
Para quem nunca tem tempo de ficar sem o tempo lhe cutucando a responsabilidade, lembre que somente uma boa cachaça, um bom whisky, ou seja lá o que for de bom e ardente, para deixar o tempo um pouco que seja sem lhe cutucar o fígado. A cachaça até pode latejar o danado do fígado, mas o tempo com certeza vai lhe dar um folga.