A ARTE DE FALAR GROSSO

Dizem que, em muitas situações, falar “grosso” resolve os mais diversos problemas da vida cotidiana, tais como: brigar com o caixa do supermercado, solucionar pendências de cartão de crédito e bancárias, acertar as contas com o encanador ou com o marceneiro, ou ainda com o cara que pensa que consertou o seu aquecedor de água, não consertou coisa nenhuma, desapareceu do mapa, e quando você liga atrás dele, uma mocinha diz (com a maior cara-de-pau do mundo) que ele se mudou pra Paris, etc, etc, etc...

Poucas pessoas conseguem falar “grosso” com “maestria”, “sofisticação” e jogo de cintura. Poucas pessoas sabem usar as palavras certas quando o prestador de serviços tenta delicadamente envolvê-lo em um mar sem fim de perguntas e afirmações absolutamente sem sentindo, tratando-o como uma criança de dois anos de idade. Tudo bem. Até posso concordar que, em muitas situações, o falar “grosso” seja mesmo muito eficaz. Tudo bem, mesmo. Conheço uma meia dúzia de pessoas que consideram-se experts na dita arte, pois têm obtido vários sucessos há anos e anos...

Eu preciso admitir que não tenho essa capacidade. Minha arte é outra. Há alguns dias, porém, uma interessante situação provou-me que nem sempre o falar “grosso” é necessário. Animei-me!

Imagine o cenário: lanchonete de uma das melhores universidades privadas do país, mais especificamente no campus da Faculdade de Comunicação e Filosofia, oito e dez de uma manhã de segunda-feira de setembro prometendo ser quente, muito quente.

Agora, pense nos personagens: a atendente da lanchonete, uma moça de seus quase quarenta anos, com uma cara de quem passou a noite inteira em um velório (provavelmente de algum parente muito próximo); um rapaz magrinho, uns vinte e poucos anos, provavelmente estudante de Ciências Sociais ou Jornalismo, óculos redondos, roupas estilo neo hippie, feições tranqüilas, de quem dormiu como um anjo a noite inteira. A terceira personagem sou eu: estudante do quarto ano de Letras, a seis meses de completar trinta anos, um pouco atrasada, morrendo de sono, querendo comprar um café expresso pingado com urgência, para não dormir durante a primeira aula. Como o rapazinho, calma, muito calma.

A cena começa a desenvolver-se: o rapazinho, pelo que pude logo constatar, havia pedido um pão de queijo (existe coisa melhor que aquele negócio amarelo, grudento e quentinho?), e um café-com-leite. Eu soube logo qual tinha sido o seu pedido, porque a “simpática” e “animada” atendente veio falando baixo, meio entre os dentes, quase que um grunhido, “De quem é o pão de queijo e a média?”, e o rapazinho bicho-grilo responde, já dando uma nota de dez reais para pagar seu singelo café da manhã. A atendente olha para ele como se aquela nota de dez reais fosse a coisa mais horrorosa que já havia visto na vida, algo de muito repugnante, um objeto contagioso. Imagine, agora, a frase dela: “Ih, não tem menor? A esta hora da manhã não posso trocar isto!”. O rapazinho diz que não. Provavelmente, ele estava a pensar o que normalmente pensamos todos, quando alguém faz essa pergunta: “Se eu tivesse menor, teria te dado, minha querida!”. A moça dirige-se à cozinha da lanchonete, enquanto eu, ainda meio dormindo, comento “Nossa Senhora, que bom humor, hein?”. O rapazinho apenas sorri, com a maior calma do mundo, como se aquilo efetivamente não fosse alterar seu dia. Ouve-se, então, um barulhinho de moedas, ela provavelmente estava “à cata” de um troco bem trocado para incomodar o pobre hippie do século XXI.

Eu, já um pouco impaciente, sonhando desesperadamente com o expresso pingado, aguardo durante os cinco minutos (sim, ela levou quase cinco minutos para trazer o troco!), enquanto o rapazinho, com a mesma paciência de santo, fala um pouquito mais alto pra ela, “Ah, não, você não vai me dar um monte de moedas!”, e ri, sozinho. Eu também já começo a rir, porque vejo que realmente não há porque deixar uma moça de mal com a vida estragar o meu dia. Penso, “O riponga está certo, vou mais é observar e me divertir”. E então ela volta, a mesma cara de velório, mas levemente alterada, com uma certa expressão de vingançazinha no olhar, com as mãos cheias de moedas. Vai dando as moedas pro John Lennon dos trópicos, que já vai dizendo, com a voz mais mansa do mundo, “Você está brincando comigo, né, eu não vou levar este monte de moedas. Posso voltar na hora do intervalo, e dar as moedas de volta pra você me trocar por notas?”. Pensei, “Meu Deus, que cara louco! E corajoso! A mulher vai bater nele!!!”. Ela olha, um olhar fulminante, achando que o menino estava morrendo de medo dela. E responde, quase sem mexer os lábios: “Hum, está bem. Dez reais a esta hora da manhã...!”. Me surpreendo com a resposta. O rapazinho, provavelmente, também. Mas sai feliz, triunfante, com sua média e seu pãozinho de queijo.

Eu, seguindo a lição, apenas me limito a fazer o meu pedido, com a maior delicadeza do mundo, “Um expresso, por favor. Pingadinho”. Ah, nada como a arte de falar “manso”...

Clarice Casado
Enviado por Clarice Casado em 26/01/2005
Código do texto: T2518