O CÃO NA JANELA
Ao longo de nossa existência nos deparamos com momentos e paisagens de tamanho apelo emocional que se arraigam nas lembranças constantes que nos vem à mente e são capazes de permanecer inscritos na alma como algo indelével. Tais flagrantes se encontram no cotidiano e se esboçam num súbito, quase a ponto de nos surpreender como chuva fina inesperada.
O cãozinho na janela do terceiro andar do prédio em frente ao meu apartamento, expressando uma ternura melancólica tocante e estranhamente profunda, tomou realce como o padrão mais singelo desses instantes. Eu o vislumbrei meio que de maneira subreptícia num dia qualquer, à guisa de algo bem à frente dos nossos passos, mas de tão singelo e inaudito parecia se esconder da própria razão de viver em algum desvão invisível de cenas bucólicas às quais ficamos indiferentes e, sem que notemos, muitas vezes nos passam despercebidos no cotidiano. Mas todos os dias ele se postava no mesmo lugar, sem latir e sem mexer nenhuma das patinhas, imóvel tal qual uma estátua de mármore.
Ali estava ele durante toda a manhã e também quando a tarde declinava, em absoluto silêncio, provavelmente olhando o vazio porque as tantas vezes em que o vi e acenei para chamar sua atenção ficou em completa indiferença, a impressão é que não me via e talvez não enxergasse mais nada além das próprias impressões pontilhando seu diminuto cérebro, a cabecinha coberta de pelos brancos recostada na grade de proteção da janela, quieto e tranquilo como um menino comportado. Não mexia um único músculo deixando-se ficar numa imutável posição enervante, a pouco de enlouquecer qualquer um pelas imediações que se propusesse a descobrir os motivos que o levavam a não sair desse letárgico estado. A brisa suave lhe acariciava o focinho, a grade flexível em tantos instantes balançava à força de um vento mais forte, as pessoas caminhavam sob a sacada do prédio a chamar-lhe a atenção, as folhas das árvores se movimentavam nos galhos à sua frente, o tempo corria sem trégua, mas o cão seguia no inabalável mutismo, sem mudar de posição nem desviar a atenção de alguma coisa inusitada que somente ele avistava.
Todos os dias, sem viariar, o cão se mostra à janela sem emitir nenhum som ou fazer qualquer movimento, lembrando um quadro vivo nalguma vitrina pet para distrair possíveis interessados. Decerto triste, talvez lúgubre, quem sabe? Terá conhecimento de segredos inauditos que quisera ou gostaria de revelar mas não pode? Por que não se comunica nem mesmo com os convivas do apartamento que se faz sua prisão, seu claustro, seu esconderijo? Penso que esse cãozinho deixará de viver repentinamente ali mesmo qualquer dia desses, deveras infartado ou certamente pelo abandono de si mesmo. O bichinho se entregou à amargura, penso. Perdeu o anelo de continuar vivo, é provável. Enquanto isso não acontece, fica à janela vagando os olhos pelo platonismo do vazio abissal.