No caruru
     de São Cosme



     Na Bahia, é tempo de caruru. E o caruru é uma festa doméstica e farta. Piteis afros mis!
     Quando cheguei por aqui, e lá se vai mais de meio século, aderi aos festejos populares da Bahia, participando de um caruru de São Cosme e São Damião.
     Atendendo a um irrecusável convite, desloquei-me para a cidade baixa, e na casa de um bom baiano, acompanhei de perto, interessadíssimo, o ritual, previamente programado, em homenagem aos santos gêmeos.
     Primeiro, a queima de incenso. A fumaça, como na ocasião me foi dito, afastaria "as cargas negativas", incumbência confiada ao carvão incandescente. E as "cargas positivas" seriam atraídas pelo perfume produzido, com a incineração das ervas.
     Fiquei abismado diante de tal ritual. Mas, confesso, que, após presenciar a interessante liturgia, senti-me, surpreendentemente, mais leve. Até então, eu só conhecia o incenso dos altares católicos.
     Soube mais tarde, que o amigo, um cirurgião conceituado, todos os anos, no dia 27 de setembro, guardava seu estetoscópio, dobrava sua bata branca, e se entregava, de corpo e alma, aos festejos em honra dos santos irmãos.
     Naquele distante setembro, o doutor Fulano não sossegou enquanto não me colocou a par da festa que estava acontecendo na sua mansão, e por quê.
     Com a desenvoltura de um devoto convicto, foi me ensinando a admirar São Cosme e São Damião.
     Passei, então, a interessar-me pela história dos santos gêmeos e a comparecer aos carurus de São Cosme - em Salvador, no mês de setembro, aos milhares. Faço-o por devoção e também por gulodice. Resistir aos quitutes dessa festança - vatapá, xinxim de galinha, camarão seco, acarajé, abará, e caruru - quem há de?
     Embora cercada de interessantes lendas, a história de Cosme e Damião é recheada de bons exemplos.
     A história é bem conhecida pelos baianos; mas, creio eu, pouco conhecida pelos que não moram na Boa Terra.
     Isso se justifica porque, em nenhum outro lugar do Brasil, Cosme e Damião são mais festejados e cultuados do que na Bahia de todos os santos e de todos os Orixás.
     A Igreja católica e o Candomblé os acolhem com carinho e muito respeito.
     Santos católicos, no Candomblé eles são reconhecidos como filhos de Xangô e Iansã.
     De repente serei deles parente: uma iluminada baiana, consultado os seus búzios, avisou-me que Xangô é o meu Orixá, e sobre isso já escrevi.
     Não se conhece a data do nascimento de Cosme e Damião. Sabe-se, apenas, que eles nasceram na Arábia. 
     Em 295 d.C, época do Imperador Diocleciano, foram torturados e decapitados, em Cirros, na Síria.
     Da sua parentela, tem-se notícias dos seus irmãos: Dou, Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi e que, em verdade, eles se chamavam Acta e Passio.
     Se destacaram como excelentes médios.
     Tinha lido no hagiológio católico, que o dia de São Cosme e Damião era 26 de setembro. Por isso, estranhei quando soube que, na Bahia, eles eram festejados no dia 27 de setembro.
     Voltei aos livros, e verifiquei que a comemoração no dia 27 de setembro tem uma explicação: no século VI, o Papa Felix IV, querendo homenagear os dois santos, mandou construir, para eles, uma basílica.
     Esse templo só ficou pronto no dia 27 de setembro, festejando a Igreja, nesse dia, a sua consagração. 
     Mas, afinal, qual foi o grande exemplo deixado pelos médicos Cosme e Damião? 
                        - A Caridade -     
     Conta a lenda, que eles não recebiam um tostão pela assistência médica que davam aos pobres.  Por isso eram chamados de os "médicos do amor".
     Claro que podia, aqui, por um ponto final nesta crônica. 
     Mas,  permitam-me os leitores ir um pouquinho mais além. pra lhes contar o seguinte: dia desses, ouvi minha empregada doméstica queixar-se do atendimento que recebera no Posto de Saude do seu bairro.
     Acometida de súbita doença, procurou atendimento de urgência. Não foi atendida porque, dizia ela, "o médico de plantão estava dormindo".
     Marcou uma consulta, com a promessa de ser atendida pertinho do Natal. 
     Teve, então, que recorrer ao chazinho caseiro, e ficou boa.  Mas guarda mágoa do facultativo (arre!) de plantão que não a quis atender, num momento de agonia.
     Nada de novo. É o que acontece, todos os dias, com os mais necessitados deste país repleto de farsantes, na área da saúde pública. 
     Creio, que se o médico dorminhoco conhecesse a história de São Cosme e São Damião, seus colegas de profissão, teria pulado da cama, para amenizar o sofrimento da minha empregada. 
     Aproveito o tempo dos carurus, para fazer esta proposta: que todos os Postos de Saúde e Hospitais públicos recebam os nomes dos santos gêmeos.
     Afinal, Cosme e Damião, praticantes da caridade, são os padroeiros dos médicos.
 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 20/09/2010
Reeditado em 28/10/2020
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