Trens sertanejos
Nasci e me criei ouvindo o apito dos trens.
Eles passavam por minha cidade vindos de Fortaleza ou do Crato.
Meus parentes, pelo lado materno, eram todos empregados da extinta Rede de Viação Cearense, a RVC, hoje uma ferrovia federal, esculhambada, e com outro nome.
Lembro-me, com saudades, das honestas marias-fumaça.
- "Lá vem a 302", gritava a meninada, movimentando a estação do Iguatu.
- "É a 401 que está chegando", dizia a mocinha, de olho nos trilhos, esperando o namorado...
As marias-fumaça não eram velozes; não eram máquinas possantes.
Algumas, na subida de um pequeno serrote, fraquejavam. Para prosseguirem, precisavam da ajuda de uma máquina mais nova, que fazia o papel do Cirineu da Bíblia.
As viagens nos trens da RVC - que partiam ou chegavam quase sempre atrasados - eram demoradas e exaustivas.
O que levou o poeta e ironista alencarino Quintino Cunha - sobre quem um dia escreverei - a chamar a Rede de Viação Cearense de Rapariga Velha Cansada.
Hoje, as ferrovias brasileiras - não apenas a finada RVC - são uma lástima.
Não vou, aqui, massacrar o leitor com mais uma crônica sentando o pau em quem não cuidou bem da nossa malha ferroviária.
Proponho-me, sim, a recordar os ótimos tempos dos trens que me levaram, dezenas de vezes, do sertão para a capital e da capital para o sertão: os queridos trens sertanejos.
Nas décadas de 1940-50, os trens que cortavam o interior do Ceará não eram trens de luxo. Mas dava pro cidadão viajar sem constrangimentos.
Até chegarem as máquinas a diesel, o percurso entre o Crato e Fortaleza - trecho que conheço bem - era feito em dois dias, com animados pernoites em duas simpáticas cidade: Iguatu e Senador Pompeu.
Ir à estação esperar o trem, era uma festa.
Em muitas localidades, chegava a ser principal diversão.
Esperando o trem, podia-se ver o vigário (de batina), o Juiz de Direito, o Promotor de Justiça, o delegado de Polícia e outras autoridades do lugar.
Os jovens marcavam seus encontros para "a hora do trem". Na estação, havia, invariavelmente, sorrisos e lágrimas...
De trem, passei por interessantes e agradáveis cidades cearenses. Por exemplo, Baturité e Quixadá.
A fértil Baturité, de clima maravilhoso, fica no sopé da serra que lhe deu o nome.
Cidade-pomar - não sei agora - mas naquela época ela oferecia aos passageiros uva, abacate, abacaxi, tangerina, pinha, e a saborosa manga-rosa, cujo cheiro acompanhava o trem pela estrada afora.
Quixadá. Quando o trem se aproximava do Quixadá, minha atenção se voltava para duas coisas: a fazenda Não Me Deixes, da saudosa escritora Rachel de Queiroz; e a "galinha choca".
Não Me Deixes. No seu imenso terreiro, dezenas de gansos, fazendo um alvoroço dos diabos, anunciavam a passagem das marias-fumaça pelas terras da querida romancista.
Como os gansos do Capitólio, eles garantiam o sossego e a tranqüilidade de Rachel, nas suas férias nordestinas.
A "galinha choca". Esculpida na pedra pela Mão de Deus no alto da serra, ela encantava os passageiros.
Para mim, depois das jangadinhas dos "verdes mares bravios", a "galinha choca" é o cartão-postal mais bonito do Ceará.
OH! Os queridos trens sertanejos...
Fecho meus olhos, e vejo as marias-fumaça, lentas, frágeis, esforçadas, diligentes, disponíveis, alegrando o sertão, com seus apitos prolongados. Quebravam aqui, quebravam ali, mas serviam ao povo com humildade, e quase de graça.
Para aqueles que gostam dos trens, deixo, aqui, estes versos do jurista e poeta baiano Raymundo de Souza Brito, que conheci na tribuna do Juri, em Salvador, fazendo, em memorável discurso, a defesa do seu cliente.
Volta Não
O derradeiro encontro na estação,
na hora da partida.
O moço rico vai voltar para a cidade.
Tudo, afinal, fora simples fantasia.
Findara o breve sonho de Verão.
- "Adeus, Maria!...
- Você vorta, João?
- Volto, Maria!"
E a sertaneja soluçante:
- "Eu fico aqui morrendo de sôdade,
você vai pras belezas da cidade...
e eu tão distante...tão distante!"
- Você vorta, João?
- Volto, Maria!"
E o povo em torno da balbúrdia da partida:
- "sai da frente, gente!"
- "olhe o embrulho, esquecida!"
- "me dê meu troco, moço!"
Lá vai o trem!...
- "Adeus, Maria!"
- "Você vorta, João?"
- "Volto, Maria!"
E o tremzinho, vencendo a curva extrema do chapadão:
- Volta, não, volta, não...
- Volta, não, volta, não...
- Volta, não, volta, não"...