“NEGORIDES”
Eurides é nome próprio que vem do grego. Significa, impetuoso, muito agitado.
Ele era negro e não tinha nada de impetuosidade capaz de lhe lembrar o nome. Os braços desciam além da cintura e projetavam-se mais longos do que o normal, induzindo a uma comparação com o protótipo do ancestral que nos moldou. Hábil impressor tipográfico administrava com maestria sua Haidelberg alemã que roncava doze horas seguidas, naquele pavilhão perlustrado de sarcasmo, ambiente coletivo, onde todos se sujeitavam à troça e à fanfarronice. Faltava-lhe um epíteto talvez; “rei da automática”, ou “rei negro da impressão”. Com ou sem epítetos, sobrevivia e não dava bola para os chistes que surgiam a cada quarto de hora; mas cada um era respeitado ao modo de seu comportamento. Ria como se estivesse engolindo o riso e assim era melhor. Nada que se lhe quisesse impor resistia por muito tempo. Seu modo sereno de apreciar as piadas que faziam com ele, resumiam-se num amarelo sorriso disfarçado no canto da boca e a compenetração no manete da Haidelberg que comandava. Agia assim por estratégia, penso. Pau pra toda obra, abandonava vez em quando, a automação da “alemãzinha” e tomava a guia da velha Minerva formato quatro, negra, feito ele, encostada num descanso forçado no aguardo de uma emergência quando a engenhoca importada não suportava.
Essa é linguagem pouco conhecida, que Eurides dominava com maestria. Formato quatro significa a divisão de uma folha de papel do tamanho de uns dois metros por dois metros, mais ou menos, em quatro pedaços com medidas iguais. As especificações Minerva e Haidelberg denominam o gênero máquinas de impressão tipográfica, ofício que já não mais representa o significado de trinta anos atrás, ocasião em que nos encontramos pela vez derradeira.
O surgimento de uma nova metodologia nas técnicas de impressão, impusera o risco de aposentadoria para profissionais de impressão das tipografias, geniais operários que nem Eurides e trouxe uma revolução sistêmica nas comunicações fazendo que as pessoas ficassem mais próximas uma das outras. É impossível que não nos adaptemos a essa nova modalidade de coexistência, representada pela proliferação do computador. Sim, esse mesmo instrumento que aposentou de vez a tipografia que durou de Gutenberg a Eurides, é o mesmo que cria a possibilidade da comunicação imediata entre as pessoas. Mas que Eurides não conhece, infelizmente.
Dentro dessa nova dinâmica topei cara a cara com Josélia Engels. Moçoila bonita, com face de traços largos, seu rosto emoldurava o quadrilátero impreciso de uma página eletrônica, onde fizera inserir um apelo de busca do pai Eurides da Silva. Estava lá, bem legível o recado. Diante de um castelo qualquer da Alemanha, clamava pela condescendência de algum residente na distante Caratinga de Minas Gerais, que não conhecia. Dessem-lhe notícias do pai, pois não o via por mais de duas décadas. Percebi logo que a busca de Josélia iria esbarrar em “Negorides”, aquele mesmo, que conheci anos atrás, na mesma cidade de Caratinga. Só podia ser ele.
Sem perder o fluxo da informação, estendi a abrangência do apelo e pude dividir o êxito com a jovem Josélia em menos de uma semana. Encontrei-o. Estava ainda lá, escarafunchando uma Haidelbergzinha, tão desatualizada, em uma romântica tipografia num encontro de ruas na cidade onde sempre esteve.
A descoberta de “Negorides”, me valeu a amizade da filha, com a promessa de eternizar o encontro através de um registro fotográfico, para posterior envio às terras saxônias.
Com origem no “entrudo” português, para mim o carnaval é a expectativa de fuga do grande centro. Submeto-me ao suave descanso que os três dias da carne proporcionam. Prefiro sempre o bucolismo da cidade pequena no interior. Preparei então, o espírito e a máquina fotográfica. O espírito era meu mesmo, o adereço digital, de minha irmã, a quem encarreguei de fazer as fotos. Visitaríamos “Negorides” na segunda de carnaval. Fiz um compromisso com Josélia e estava disposto a cumpri-lo.
Ao final de meia dúzia de horas, longas e cansativas, seguidas a um indigesto congestionamento de almas no terminal de embarque da capital, em razão da folia, chegamos a nosso primeiro destino; uma longa espera nos levaria até Entre-Folhas, onde nosso pai nos aguardava de tornozelo quebrado.
No entroncamento de vias, sentamo-nos no improvisado banco liso de madeira e conversávamos. O trânsito era intermitente.
A conversa entre eu e minha irmã foi interrompida com a aparição inesperada de “Negorides”. Foi tudo tão rápido que parecia impossível classificar aquilo como verdade. Caminhando em nossa direção, trazia na aparência os mesmos traços de trinta e oito anos atrás. Apenas no encanecido dos cabelos se via a diferença, no contraste da moldura de seus olhos grandes, e o sorriso largo e amarelo sendo engolido, estrategicamente, como forma de defesa, na medida em que eu me aproximava, insistindo em chamá-lo pelo nome. Não demorou muito para me reconhecer. Nos abraçamos com carinho e eu lhe falei de Josélia. Seus olhos brilharam e ele também me falou da filha, feliz ao seu modo. Prontamente posicionou-se para uma série de fotos, a meu comando, que fizemos ali mesmo, na beira da estrada. - Não o encontraria; disse. Com o feriado de Momo, só voltaria ao serviço depois das cinzas.
Se alguma força estranha o levara ao meu encontro, não discutirei, o certo, pois, é que terei cumprido efetivamente o compromisso firmado com Josélia Engels, quando, do outro lado do mundo ela puder, lendo essas anotações, folhear as fotografias do pai, de quem não tinha notícias há vinte e três anos. Valeu. Foi grande também minha felicidade, não só por atender Josélia, mas por te-lo encontrado e ter podido abraça-lo.