POESIA NA SOLEIRA

“Como ter esperança

Sem ter o pensamento

Como ter a lembrança

Sem expor o sentimento.”

Izabel Cristina Milano

Manhã fria. Tento me encolher, minimizar o vento, e deixo os olhos presos ao chão. Numa breve distração, tropeço na poesia. Ação quase literal. Quando me reafirmo no chão, encontro pendurada uma pequena tabuleta “Livros de poemas R$ 1,50” ao lado de uma mulher sentada na soleira da loja sob rotos cobertores. Em sua frente, uma velha máquina de escrever olivetti sobre um suporte improvisado.

Não resisto e pergunto se posso comprar um livro. A mulher me responde com a voz pausada. “Agora não posso escrever porque estou com frio. Passa mais tarde que apronto um”. O olhar dela é envolvente e expõe uma existência eqüidistante entre a realidade e a fantasia. A poesia muitas vezes está na face, na imagem, no som...

Izabel Cristina Milano se apresenta e me oferece um caderno de poemas. Leio as palavras em folhas pautadas sem rasura, impressionada com a firmeza de sua letra. Ela fala sobre sua vida enquanto intercalo suas confissões com os versos, as expectativas, os sofrimentos, os pensamentos, os amores...

Desde os cinco anos, Izabel mora na rua. Não se lembra dos pais verdadeiros, mas foi criado por um casal afetuoso que lhe acolheu embaixo do Viaduto Capanema em Curitiba e que a fez estudar, alternando o conhecimento com os turnos em que puxava o carrinho de papelão. Ela não teve muitas possibilidades, mas sempre gostou de escrever. Está naquela esquina há sete anos vendendo suas poesias no sinaleiro. Há dois anos um médico, que todo dia passava pelo local, surpreso por ela oferecer sempre um novo poema escrito e reproduzido por xerox, parou o carro, abriu o porta-malas e lhe ofereceu uma máquina de escrever. Desde então ela faz livros com as folhas dobradas e grampeadas e os poemas escritos à máquina.

Leio o poema Meu filho. Palavras que acariciam o rebento e descobrem o ventre. Tento imaginá-lo. “Tenho uma recordação,/ Por ter te gerado,/ Plantei no meu coração/ Meu filho criado.” Onde estará? Hesitante falo sobre o poema, Izabel sorri sem graça e responde que é um sonho. Não pode ter filho desde que foi estuprada aos 11 anos por três desconhecidos na rua.

Outras revelações me tiram o chão, sinto penetrar num mundo desconhecido levada pelas vivências da vendedora de poemas, quase um conto de Hans Christian Andersen. Longe dos mercados editoriais e das prateleiras das livrarias, Izabel vive a poesia, gosta de falar sobre suas inspirações e escreve a própria vida com a intensidade de um romance de Charles Dickens.

Percebo vários cadernos de espiral com poemas empilhados sobre a soleira ao seu lado. Marco um horário para pegar meu exemplar e me despeço da poeta, imersa nos poemas que li nas ondas de sua caligrafia.

O livro tem capa verde com o pequeno poema acima transcrito, índice e cinco poemas: “Pensamento (A minha existência)”, “Mendigo”, “Meu filho”, “Morador de rua” e “Gostas de orvalho”. Leio os versos com atenção. “Assim é todo momento,/ Que se faça resplandecer,/ Assim é o pensamento,/ Que faça o amanhecer.” O amor é um tema recorrente. A capacidade de Izabel Cristina de perceber o sentimento, viver o sofrimento e anunciar a esperança transcende minha compreensão. Despeço-me da poeta com a certeza de que voltarei para comprar outros exemplares e valorizar a mulher anônima de trinta e seis anos que dedica a vida a escrever os poemas que não conseguimos produzir nos roteiros do dia-a-dia.

Versos do amanhecer... Atravesso o dia com a reflexão entranhada em suas composições poéticas.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 27/09/2006
Reeditado em 27/09/2006
Código do texto: T250679