Cantor chorando
Aquele senhor de paletó preto prestava muita atenção aos acordes do violeiro. Parecia pressentir no todo sentimental certo envolvimento triste. O dono do bar era camarada de gargalhadas movidas a piadas obscenas. Seu temperamento de dono exigia muito colorido melódico até o raiar da aurora. Às vezes surgia o novo bardo metendo os peitos dramáticos nalguma sonoridade ferida de amor. Algo típico dos abandonados e das amadas inconsoláveis. Sem contar inúmeras traições tingidas de inexplicáveis fugas, todas elas embebidas por fortes angústias usuais dos inebriados bem envenenados.
O violeiro era delgado porque se usava dizer magro naquele momento sem infortúnios.
De fato sua canção no começo entoou certo lirismo, até ser conduzida por versos pegajosos de cachaça barata. Canha que fervia nas veias dos seres embotados, espécie de crentes sem reparação num inferno emocional, selecionando cada qual o retrato de vagos e raros momentos sem desespero, mesmo que desabasse tudo sobre alguma vulgar notícia triste, fixada naquelas vidas sombrias.
Ao terminar a melodia escolhida criteriosamente pelo repertório do violeiro, logo ele tratava de receber aplausos, dizendo sempre sobre a canção, que eram seus os versos, de sua autoria, de moto próprio. Obtidos através da sua pessoa de poeta. Puramente formatado pelas luas, estrelas e amalucadas madrugadas. Fazia então a reverência com chapéu, disposto a crer que todos ali eram imperadores do ritmo. Portanto, deveriam lhe depositar moeda ou trago. Seus olhos se acendiam como lanternas nesse espetáculo mágico.
Francamente estava livre naquele instante entre as mais lindas e doces vadias melindrosas. Gatas tão mansas e sonolentas no gingado que lembravam o esquecimento de todos os males bordejados pelas noi “O sol adoça a alma da passarada…” Cantava o violeiro. Após esse repertório de batucadas, dessas de fazer Rei Momo se sentir leve espumante sobre a areia marinha, começou a diminuir o ritmo. No fundo, todo mundo respeitou a mudança de temperamento. Caiu nova cratera de vinho nas mãos do gordo embriagado que gemia pela tal Amélia Lira. Decerto a mudança seria desses truques de músico cansado. Perfil de estilo porque cheguei a pensar que há certo ponto nos eventos musicais em que tudo se resume no pleno estágio do equilíbrio dinâmico. Elevação, garoa de cachaça, aspersão de prazer… Sobre aquelas vidas tão boas, compostas de trabalhadores misturados aos devaneios dos malandros. Reduto de homens maltratados que amoleciam na onda, indo direto aos delírios, quando empenhados numa boa batucada.
Único culpado dos enganos do mundo era o talentoso cavaquinho. Culpado de grandes arrastados debaixo da lua que procurava nessa ilusão a cara-metade. Música boa permitia aos dois empregados de mesa (velho Nei dos tempos do Bar do Beto e o Dinarte que se formaria em direito) atendessem num dançarino compasso, entre a freguesia efervescente, ainda que desconfiassem de que algo trajava certa mudança de humores na atmosfera acinzentada de tanta nicotina insólita. Riso e alegria eram trocados pelo multicolorido como num carnaval repentino sem Maracangalha ou pierrô.
Começava a turvar lentamente o ambiente multicolor das garrafas, dando avisos de que aquele esquadrão de caras alegres, bons em mentiras no primeiro ritmo espelhasse alacridade docemente. Ao fundo tocava o tambor altitonante unindo-se ao ganzá que abrilhantava os acordes do violeiro. Exuberantes morenas com sandálias sensuais levantavam as saias com o vento, dançando entre mesas vestidas de vermelho carnal.
Uma de nome Inês atirou um beijo mímico para o desconhecido, provocando obscuros ciúmes. Mesmo dando a entender de que todos haviam sido beijados com a mesma ternura utópica. Naquela hora antes de a tristeza musical ter chegado o carnaval parecia inextinguível.
Por um instante aquele senhor de paletó preto, único a prestar atenção aos acordes de modo sentimental, sabia compreender o quanto morava no cantador o pungente luto soterrado. Pregado naquela encenação e que mal dormido agora havia se revelado intensamente. Estava chorando. Amigos, irmãos, mães: o cantor estava chorando.
As lágrimas derramavam-se pela frase musical de segunda voz sobre a lira dissonante. Embargada a voz como o vento frio acaba erguendo às folhas do outono. Aquele homem delgado e com violão era sem casa, sem amor, sem nada além da batucada. Após breve silêncio se recompôs com o quê dos admirados. Admirado de sonho quando recomeçou a entoar outro samba luminoso. Samba que cantava a Guanabara que jamais vira.