O botequim da esquina - I A bondade.

Entre umas cervejas e outras, um grupo de amigos já entorpecidos pelos vapores do álcool conversam:

- Olha o que falta no mundo é bondade – disse Erivelto. Batendo com o dedo em riste na mesa.

- Quanta bobagem, Erivelto. A bondade não existe. – Ricardo, com sua barba por fazer, seus cabelos desgrenhados e sua mania de brincar com palitos de dente.

- O que existe para você, Ricardo? Além do seu mal humor. – Rebateu.

- Muitas coisas existem além da minha Distimia. Mas dentre as que não existem está a bondade.

- Eu creio na bondade das pessoas. Mas me interesso em ouvir vossa sapiência o excelentíssimo mestre do conhecimento Ricardo nos demonstrar sua teoria. – era agora Mauro, com seus dentes tortos e seu senso de humor mais torto ainda. Mesmo assim, o único capaz de entender que apesar de supostamente ser um ‘homem dos bastidores’, Ricardo demonstrava-se um amante dos palcos. Quando podia explanar sobre qualquer assunto sentia-se feliz. Nesses momentos percebia que era alguém especial e que o salário e a vida precária eram fruto de um mundo que infelizmente não pôde assimilar suas competências.

- A bondade não existe. O que existe é um decalque, uma casca, um manto de aparente bondade mas que serve de abrigo para sentimentos menos nobres tais como: egoísmo, ganância, soberba entre outros. – No meio das frases Ricardo ia molhando os lábios com cerveja, e deixando cada vez mais seu corpo largado na cadeira. Ares de desleixo eram sua especialidade.

- Portanto meus amigos, fujam das pessoas bondosas, como o diabo foge da cruz. E sabem por que? Porque o bonzinho fere aqueles que estão mais próximos dele. E é do sangue que jorra desse ferimento que o bonzinho tira o alimento para continuar em suas falsas bondade.

- Mas que grande merda, Ricardo. – disse Mauro e todos riram inclusive Ricardo.

- Merda mesmo amigo. Tomemos como base três histórias que conheci. Três pessoas de uma bondade infinita para quase todos, menos para mim, que sou capaz de ver as sutilezas.

- Menos para você que vê maldade em tudo. – Mauro novamente, só que dessa vez os olhares do grupo o censuravam. Estavam interessados. Ricardo continuou:

- Em primeiro lugar conto a vocês sobre certo amigo meu. Namorava ele uma dessas falsas heroínas românticas. Falsa, porque não creio eu em mulheres frágeis, delicadas, pudicas e corretas. Só creio em putas e nada mais. Essa menina era um poço de delicadeza, fragilidade e inocência, para ser personagem de qualquer livro do romantismo só faltava o lencinho com sangue. Mas algo maculava esse puritanismo todo. Era ela mãe solteira. Evidente que o culpado disso era o pai da criança, torpe homem que transou com um ser tão virginal quanto Maria. A pobrezinha possivelmente não sabia o que era sexo. Enfim... Sofredora mãe solteira, era quase uma santa mártir. Meu amigo caiu de amores por tal ser. Para ele, ela era a coisa mais perfeita do mundo. Mas voltando ao foco: a bondade de meu amigo constituía de aceitar o bastardinho, como quem aceita a um filho de sangue. Estou equivocado... Melhor dizendo ele gostava do garoto mais do que um pai gosta do seu filho de sangue.

- Já sei. Vai dizer que ele fazia isso por interesse. Que fazia isso só para agradar a mãe do garoto e assim continuar o namoro. Qualquer cafajeste de plantão sabe disso. Fale bem do filho e conquistará a mãe solteira. – Mauro novamente. Ricardo olhou pacientemente para ele, tomou o último gole do copo, serviu a todos da mesa e continuou.

- Em parte sim. Mas nesse caso... A bondade ia mais longe, porque o lucro era maior. O casal externava aos quatro ventos, a bondade inigualável do meu amigo, por acolher aquela criança sem pai. Eu passei a odiar o garoto de tanto que o nome dele era evocado, em qualquer conversa... Em qualquer momento... lá estava meu amigo evocando a criança, e com lábios cheios dizendo: ‘Meu filho’. Não era mais uma criança, era um outdoor, uma campanha pública, uma propaganda ‘Sou o mais bondoso dos homens: adotei um bastardo.’. Enfim, era o pequeno usado como instrumento de propaganda, era ele tudo menos uma criança.

Matou o copo em sedentas goladas, limpou os lábios e sentenciou:

- E assim termina a história. Ela deu um pé na bunda dele, quando arrumou um rico que paga colégio particular para o rebento.

- E ele? – perguntou Erivelto.

- Ele não saiu perdendo não. Seu mecanismo de flerte agora é mostrar como é coitado, adotou o filho dela como seu e levou um pé na bunda. Meia hora dessa lenga lenga e ele já conquista uma mulher.

- E os outros dois exemplos? – Perguntou Erivelto. Apoiado por todos.

- Ficam para outra cervejada.

Atirou algumas notas na mesa e levantou-se cambaleante com suas calças jeans desbotadas e sujas de giz.

Luís Figueiredo
Enviado por Luís Figueiredo em 16/09/2010
Reeditado em 17/09/2010
Código do texto: T2501779
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