QUANDO FOMOS O SER ÚNICO
QUANDO FOMOS O SER ÚNICO
Houve um tempo em que eu, mentalmente, te pedia um sinal e o telefone dava um toque.
Houve um tempo em que eu conversava contigo no meio da noite e, à distância, colhias as pontas das minhas palavras.
Houve um tempo em que eu, estivesse onde estivesse, te carregava em minha pele, no meu sangue, nos meus ossos, não como se carrega a um filho, mas, a carregar um duplo de mim em mim, todo o tempo.
Houve um tempo em que, pássaro único, voávamos para um céu próprio, refúgio insuspeitado e inatingível a quaisquer outros.
Houve um tempo em que nosso sentir ultrapassou os limites do sentir humano. Não se vive isto em vão, quem isto ousa não escapa à mais terrível das punições. Na Grécia se dizia de tais humanos temerários: “ Praticaram hybris.” Praticar hybris é ir além do permitido pelos deuses, é querer-se, para além de si mesmo, a um outro alguém humano. Quando isto acontece, os deuses abatem os infratores, no auge da sua força. Paga-se pela audácia de tal amor com a morte, senão com a morte física, com a morte simbólica, a mais terrífica de todas.
Paga-se com a morte, mas, ainda que na morte, não se pode esquecer. Carrega-se para sempre a memória da eternidade que se viveu, a memória da eternidade que os deuses arrancaram de nós porque a tal eternidade não se faz jus; aqui, na Terra, os Fados obrigam a permanecermos, mortalmente e até o derradeiro dos dias, sendo apenas dois.
Zuleika dos Reis, na manhã de 15 de setembro de 2010.