Ator de Xico revelado

Acabo de receber um espírito. Ele chorou quando resolvi buscar psiquiatra. Com psiquiatria ele vai embora. É encosto. Sou ateu e ator. Pronto. Meu filme sobre Xico ficou melhor quando confessei minha conversão de ateu desgraçado e ofuscado para a nova alma de sucesso. O sucesso é sempre a nova alma. Que seria da vida sem consolo poético? Na verdade sou ator e também me chamo Xico. Para vender melhor o filme se tornava evidente à conversão. Ocorre que o espírito me pegou. Rasgou minhas vísceras penetrando miseravelmente minha razão vazada pelo dinheiro. Agora tenho que conviver com ele. Escolher entre ele ou a loucura de Artaud.

Quanto ao filme? Ele está vendendo extraordinariamente. Desconheço fantasia mais feliz do que chamar os mortos para um bom truque caligráfico. O único que restou fácil depois de Houdini ter desmascarado o começo do espetáculo. Com Houdini ninguém se meterá outra vez. Desde menino conheço o Xico. Nascemos juntos na mesma cidade rural interiorana. Ele imitador gráfico perfeito e eu ator. Com o passar dos anos cedeu ao talento. Devíamos ter entrado para o teatro juntos. Éramos apaixonados pelo teatro grego. Eu segui meus passos e ele passou por cima dos truques se tornando mestre do convencimento fácil. Que grande intérprete! Julguei que fosse se arrepender como Dali no final gemendo: não quero mais ser Dali! Querendo dizer: fui ator, quero no finaldo espetáculo ser eu mesmo. Ser ator é a única profissão inata, aquela que não exige palco maior além do próprio rosto.

Nada como a mais terrível das desgraças para precisar com urgência de alívio. Quando papai morreu num acidente de carro, ele me visitou. Pensei que fosse me dar algum bilhete de papai morto. Esqueci de que se tratava de homem fino, brilhante estelionatário das almas penadas, como ele mesmo dizia em segredo. Para mim naquela hora era inútil, restava o ateu. Falam tão mal dos ateus, mas fui ateu até o filme de Xico. Compreendi com imaginação todo o cenário do profundo e inextrincável fluxo sobre o absurdo inexorável. Para que cobrir com a terra da fantasia a maldição da impermanência? Queria mesmo ser ator para burlar essa visão que nunca cega.

Quando me chamaram para o papel de Xico, pensei que meu filme venderia mais do que os seus livros enfeitados de alucinações tão próprias daqueles que vendem ao desespero uma solução prática. .. É difícil aliviar a miséria sem teatro. Quando morreu julguei que o truque de Xico acabaria. Mas veio o filme e a ressurreição da farsa. Um grande filme, um sucesso de bilheteria. Estava consagrado Faltava apenas oportunidade para validar ess esforço de ator. Esperava uma ligação. Do céu? Talvez. Conheci Xico como ninguém. A mesma idade, o mesmo tipo físico, a mesma casa rural, os mesmos piedosos gemendo uma graça no portão de casa. Quando a televisão me chamou para falar sobre esse papel senti que era minha vez de demonstrar o meu talento. Seria desta vez também um mestre. Decretaria a anulação do meu ateísmo num lance perfeito, sutil, abstrato, para criar atmosfera e densidade as grandes dores humanas. Negaria meu ateísmo para a população de expectadores corroída de desejos abstratos, corroída pela corrupção, além de tantos abusos. Só os grandes atores criam anestésicos reais na exata dose hipnótica inteiramente voltada às multidões devastadas pela obscuridade.

No dia da entrevista vesti minha roupa branca para melhorar o aspecto. Não ficaria bem para um sucesso de bilheteria confessar a minha verdade exclusiva, para isso havia escolhido a profissão de ator. Para mentir porque a verdade para nós só é ideal se perfeitamente representada. Quando então se converte a realidade em fortuna particular...

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Qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência virtual.