CRÔNICA-PROTESTO PELA ALMA DO FLAMENGO

O Flamengo de tantas glórias e tragédias vive nestes dias a frustração de não ter o poder de curar nenhuma tristeza e, mais grave ainda, não causar nenhuma úlcera. A forma como o time vem jogando não constitui em ameaça para nenhum cardíaco. O Flamengo joga com tédio. Não sofre tantos gols, mas não tem a ambição de imputar ao adversário nem o mais tímido terror.

Vivemos numa época em que o Flamengo não desperta o furor, o ódio, a inveja, o câncer nos adversários. Hoje, nos contentamos com rivais solidários, rivais que abraçam o manto rubro-negro com compaixão e pena. Um tempo que, talvez, o Apocalipse do futebol não profetizou.

Poderia dizer que dói ver o Flamengo assim. Mas o time está tão apático, tão combalido que não produz os elementos vitais da dor, do pranto, do desespero. É tempo de não roer as unhas, de conversar sobre política e novela durante a cobrança de um escanteio. Tempo de olhar para a camisa e não ver nela a armadura de Ulisses. Não arrepiar os pêlos do braço quando o time entra no gramado. Sinto saudade do tempo em que o Flamengo me fazia sofrer, me fazia morrer e ressuscitar três vezes durante uma única tarde de domingo.

Ver o Flamengo não é como ver qualquer time. O Flamengo é, talvez, o único time do Brasil que consegue impor unanimidade em uma família grande no Amapá ou no Mato Grosso. É capaz de motivar felicidade e luto no ambiente de trabalho em qualquer repartição do País. A camisa do Flamengo é tão popular no Brasil como a garrafa de Coca-Cola. Contra ela são erguidas conspirações e rezas, sem sucesso. A ela são lançadas oferendas e histerias. Mas ao manto sagrado não é permitido nunca, sem qualquer espécie de concessão, que passe incólume, sem despertar paixões favoráveis e contrárias. Ao Flamengo não é dado o direito da indiferença. Ser Flamengo ou ser anti-Flamengo é ser partidariamente fervoroso.

Mais que um atleta com seus dotes espartanos trajando a camisa do Flamengo, é preciso que se veja a alma. O Flamengo não faz gol de cabeça, de perna direita ou de barriga. Gol do Flamengo tem que ser feito com a alma, delirantemente sempre bem distante da tática, da ordem ou da técnica. Que se ampute a palavra raça dos manuais que catalogam seres humanos em brancos, negros e amarelos. Que a raça tenha o santo privilégio de habitar unicamente o olimpo do Maracanã ou de qualquer outro templo os pés, as mãos, a cabeça, a pele, a alma dos jogadores rubro-negros.

É preciso que o Flamengo volte a vencer. Que volte até a perder, suprema concessão, mas que volte a ser Flamengo, que possa comover, adoecer, provocar discussão. Que transmita aos adversários não o simples respeito por enfrentar uma instituição vitoriosa, mas sim pânico, temor por duelar com um titã. Que o Flamengo volte a ser, em caráter de urgência, para o pobre não a riqueza, mas a força para sobreviver; para o pobre de espírito não a nobreza, mas o alento da compreensão; para o enfermo de tristeza não a felicidade, mas a possibilidade de continuar vivo, mantido por um fiapo de alegria.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 12/09/2010
Reeditado em 10/04/2012
Código do texto: T2494024