PÁSSAROS QUE PASSARÃO

Se te expões nas questões públicas, nas questões de amor não te desnudas nem diante de ti mesmo.

Nas questões públicas sais como um leão de peito aberto; nas questões de amor usas todos os disfarces possíveis.

Nas questões de amor te apraz manter-nos cativas, a todas, nós, tuas cúmplices-cativas nos vai-e-vens de tuas falas, de teus verbos, de teus silêncios, de teus dizeres e desdizeres,de teus desvios, de tuas idas e vindas sem riscos efetivos para o status quo dos centros reais da tua vida.

Nas periferias do mundo nós, as cativas, nós, tuas cúmplices, varamos os anos, as décadas a nos comprazer com os enganos, a nos digladiar dos mais diversos modos, em guerra inútil, inglória,sem saída. Passamos a vida a interpretar, cada uma a seu favor, os signos que distribuis a mãos-cheias.

Não creio que te alegres com isso, penso mesmo possuires uma segunda natureza que, desde sempre, te obriga ao uso de tão múltiplos disfarces.

Quanto a nós, tuas cativas-cúmplices, tudo o que temos desejado ao longo de tão longas vidas é saber-nos quem de nós tem, afinal, no centro de teu ser, a coroa da rainha; cada qual,em suma, julga deter nas mãos as chaves do Reino.

Passamos, as cativas-cúmplices, a vida a beijar o ar como na letra do fado. Damas de outro tempo, de outros séculos, senhoras anacrônicas de vidas que poderiam ter sido, mariposas em torno da luz até que enfim tombemos na hora definitiva, carregando para a eternidade ou para o pó a certeza, cada uma de nós, a certeza de que nunca se abdica, de ter sido e de ser a musa única, a única imortal da tua vida, senhor e súdito dos segredos que não nos pertencem nem pertencerão, servo e senhor dos próprios segredos que tampouco te pertencem nem te pertencerão.

Apesar disso, os poemas de todas as vidas se fazem nas páginas e nos tempos.Indiferentes aos sentidos que lhes damos permanecem nos livros, independentes de nós, servos,senhores, seres de passagem, passageiros, todos pássaros provisórios que inelutavelmente passarão sem deixar, nenhum deles, vestígios quaisquer de voos reais nos céus.

Zuleika dos Reis, na manhã de 12 de setembro de 2010.