...o saleiro está vazio...

Foi de tanto rolar na cama que amanhecera com os olhos fundos, mal clareou e já estava de pé andando de um lado para o outro na ponta dos pés. A água borbulhando era prenúncio de um novo dia, o café dava forças para a nova jornada.

Entrara mais um dia junto com o sol que parecia pálido, mas não podia perder a esperança de reconstruir as horas que cada vez ficavam mais perdidas. Os mesmos móveis, os mesmos hábitos, só a disposição já não parecia mais a mesma, o andar ficara lento e os olhos já não olhavam tão distantes embora a cada dia buscasse um esforçado sorriso para esboçar entre as mesmas quatro paredes.

O corpo rangia junto com as portas mostrando o sinal dos tempos. No verão o sol alegrava o ambiente invadindo portas e janelas com a mesma intensidade que o frio e o vento no inverno; começava a se acostumar às lembranças dos dias floridos de risos e brincadeiras que não eram tão presentes mais. Poucos passos e estava de cara com a rua, se conformava em respirar fundo, repetir o mesmo ritual de anos a fio.

Não havia muito mais a fazer senão se sentar e conduzir com as pontas dos dedos o que ainda sabia como fazer com competência e esperar que bons ventos trouxessem de volta dias de festejos e aqueles abraços calorosos que não se lembrava mais da quentura.

Seus olhos não tinham mais o mesmo brilho, escondidos atrás daquela armação antiga, passavam o dia compenetrados em leituras e imagens coloridas, mergulhados em pensamentos tantos que não sabia mais traduzir em palavras, só emitia silêncios agora. Vez em quando ouvia-se uma música ao seu redor, eram esses os raros momentos em que seus olhos sorriam calados. Não era mais dona nem do seu parco silêncio e mal se equilibrava nos saltos; um buraco na ampulheta havia quebrado sua ligação com o mundo.

Perdia o dia dentro das horas, absorta, o calendário a assustava pois andava aos pulos sem que conseguisse acompanhá-lo; olhava-se no espelho a procura de si e só encontrava um fantasma reticente, cheio de dúvidas e incertezas. Distanciava-se sem mesmo querer, das conversas, dos encontros; guardava nas mãos doloridas a firmeza dos traços e a habilidade da escrita ainda que o peso das mãos transformasse em garranchos seus textos ditados pela agilidade da inspiração.

O dia amanhecia e findava quase sempre no mesmo tom cinza, não conhecia novidades além das que sua imaginação lhe permitia sonhar. Fechava a porta do dia sempre no encontro dos ponteiros, dentro do seu coração a mesma angústia gritava sem que lhe ouvissem.

À mesa os olhos regam de lágrimas a oração repetida indefinidamente; o corpo moído conta os minutos para se aquietar dentro de mais uma noite igual a tantas.

Angélica Teresa Faiz Almstadter
Enviado por Angélica Teresa Faiz Almstadter em 25/09/2006
Reeditado em 25/08/2010
Código do texto: T249242
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