A revolta das putas

"A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude" ( La Rochefoucauld, moralista francês)

Esse episódio da história de Itabaiana é contado pelo escritor pilarense José Augusto de Brito em seu livro “Pingolenço – um tributo à arte”. Foi uma espécie de levante contra determinação do prefeito Durval de Almeida que mandou fechar as casas de prostituição da rua do Carretel, acabando com o negócio do sexo pago na então progressista Itabaiana, centro de intenso comércio de gado. As meretrizes eram representadas por Rita do Bonde, líder dessa classe laboral, mas o grande incentivador da revolta foi o palhaço Pingolenço.

Quem era Pingolenço e por que socorreu as mulheres-damas nesse fato notável que sucedeu nos idos de 1930? O Pingolenço foi um gênio nascido em Itabaiana. Autodidata, era desenhista, pintor, mecânico, engenheiro, mestre de obras, músico e eletricista. Construiu um circo onde trabalhava como palhaço, trapezista, bilheteiro, apresentador e cantor, além de único músico da banda. Hélida Brito, filha do cronista José Augusto de Brito, nos conta que o palhaço Pingolenço era querido e respeitado por todos pelo seu bom coração.

Foi então que o prefeito Durval de Almeida, atendendo aos reclamos das Filhas de Maria, Apostolado da Oração e outras beatas preocupadas com a moral pública, condenou as raparigas, coibindo a prática e fechando as chamadas “casas de tolerância” da Rua do Carretel. Os homens, fregueses das “meninas”, engoliram a proibição com medo do escândalo que seria defender publicamente o direito daquelas pobres criaturas de sobreviver. Sem ter um ofício, sem renda suficiente, as “mariposas”, ou “filhas de Eva” como se dizia antigamente, passaram a pedir esmolas nas ruas, aumentando o contingente de mendigos nas sextas-feiras. Completando o quadro trágico para essas infelizes criaturas, o delegado baixou uma portaria obrigando as putas a usar um remendo de estopa no vestido, “para distinguir das senhoras de bem”.

Com o fechamento do cabaré, os índices de crimes sexuais aumentaram sensivelmente. As mulheres de “vida fácil”, umas foram embora, as que ficaram procuravam o ofício de lavar roupa no rio. O palhaço Pingolenço tomou as dores das pobres mulheres. Quase sozinho, começou uma campanha para derrubar o decreto do Prefeito e a portaria indecente do delegado, que “depõe contra a dignidade humana”. Já naquela época, o palhaço Pingolenço entendeu que prostituição não poderia ser considerada vadiagem por constituir um meio de subsistência, ainda que considerado “imoral” pela sociedade hipócrita e conservadora. Estudando as leis, Pingolenço descobriu que o Código Penal não punia e nem pune a rameira pelo comércio carnal, mas tão somente aquele que tira proveito da prostituição alheia.

O rábula das rameiras não só impetrou requerimentos ao Juiz como liderou o movimento de apoio às desprotegidas meretrizes da rua do Carretel e adjacências. Na grande feira livre, nos intervalos das acrobacias, malabarismos e palhaçadas, Pingolenço despejada o verbo a favor do direito das prostitutas exercer sua ocupação. Com a cara limpa ou pintada, Pingolenço não titubeava em afirmar que sexo é uma necessidade fisiológica que, a exemplo das outras, se não for saciada chega a proporções desagradáveis e até ilícitas. Assim, cabe ao Poder Público melhor reflexão no que tange à prática da prostituição antes de pensar em afugentá-las de locais públicos ou matar as rameiras de fome.

Tanto fez que conseguiu abrir as casas das messalinas, salvando-as da falência. O prefeito voltou atrás, mesmo ameaçado de excomunhão pelo padre. José Augusto de Brito assim encerra sua crônica: “O povo, sentindo a liderança de Pingolenço, quis por todos os meios fazê-lo prefeito da cidade. Ele desculpou-se assim: “Eu nasci mesmo foi pra ser palhaço”.

Esse episódio foi abafado pela crônica oficial. Na lembrança oficial isso nunca existiu, mas não na memória subterrânea daqueles lutadores comprometidos com a história de transformação social. Pingolenço hoje é nome de rua em Itabaiana. Merece monumento pelo extraordinário artista e ativista dos direitos humanos que foi. “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento” escreveu Milan Kundera.

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Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 04/09/2010
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