Reticências
Amor de verdade... Começar alguma coisa por esse conceito é meio um risco de se nascer pela morte ou pelos pés. Acha que é melhor pensar em pernas porque puxar pernas frágeis como as do amor deveria ser algo cruel o suficiente. Amor de mentira nem era parte da realidade de verdades que Sara guardava, ela só queria que alguém dissesse que a amava de verdade; então não era o amor que possuía uma característica, mas a relação. Tudo que gira em torno de relação parece circular demais para uma menina que sente a vida esvair a cada passo dado pela varanda de casa. Essa Sara tem uns vinte e seis anos agora e nem pode ser chamada de menina, mas usava vestidos que lhe caíam ao joelho e ainda chinelos sem ocasião. Gostava também de pedalar, e quase sempre caminhava pela varanda, de onde podia finalmente fitar seus passos e me assomar aos seus questionamentos de vida. O amor era de mentira porque não tinha relação com ninguém. Só eu fazia ideia do que ela queria e nem a queria saber que estava lá. A história era dela.
Sara tivera um namorado que ia todas as sextas pra sua casa porque sexta tinha uma significação estranha de fim de tudo barra última oportunidade de início. Os dois se deitavam na varanda e olhavam o céu tocando discretamente seus respectivos sexos através das palavras. Só eu podia perceber isso porque ouvia bem tudo que pertencia à esfera das palavras. Achavam arriscado fazer o que faziam em público; não tinham ideia do quanto eram patéticos ao deslizarem pela mesma metáfora das sextas eternas. Só não sabiam o que esperar do eterno, já que desconheciam o tempo do amor. Um dia num último suspiro ele disse que a amava e ela se sentiu viva como nunca, até pensou que alguém mais sabia seus pensamentos (mais uma vez, eu) e concordou em fazer parte de um todo de liberdade flutuante. Naquele dia ele a puxou pela mão pra dentro do quarto e tirou das palavras o que havia de sexo. Ela era feliz e ele não sabia que isso simbolizava o retorno do amor. Na outra sexta...
Na outra sexta tudo dependia da quinta, da quarta, da terça, e Sara de repente se viu presa aos dias como se representassem algo mais do mesmo. Os dias não se contavam até a sexta, eram sós e participavam de Sara. A menina era um evento sem descrições sentimentais, estava arrasada pela chuva que tempesteou a sexta, alagando a varanda. Daí, foi uma sucessão de imprevistos que distanciou gradualmente o casal de escola. Ela cresceu entre livros e tardes sem sextas. Quanto a mim, nesse passar dos anos nem sabia se estava matriculada em alguma universidade porque sempre que queria, olhava pra varanda e a encontrava como alegoria constante. Palavras deixaram de ser trocadas naquele alto da casa, agora elas eram recebidas como ordens. Sara desconhecia seu poder de fazê-las desabrochar. Finalmente sumiu. Fiquei só a olhar meu vazio sobre a varanda. As chuvas agora passavam por ela sem deixarem marcas e eu, nesse semelhante agora, pensava sozinho, morrendo de medo que um dia ela voltasse e soubesse de minhas aventuras por varandas imaginárias. Minha mãe sabia e, o acaso de morarmos juntos me trouxe a informação de que Sara morrera. Minha mãe era louca.
Sara não morrera, falecera.
Seu sentido era falta. Uma falta tão grande que vivia despedaçando no meu peito cada vez que chorava por ela. A menina cujos passos cresceram aos meus olhos simplesmente quis ser alguém além das verdades. Percebi que toda sua leitura que lhe dava ordens fora desconstruída nesse tempo sumido e Sara olhou e achou o fundo que continha as verdades diversas, calmas sem nem menos pedir nada, processos de amor que apenas lhe acariciavam o braço em sinal de respeito. Sara, adeus! A varanda é minha agora; e esse "é" foi de muitos anos atrás pois Sara retorna um dia no meu futuro e anda, anda. Todas as sextas tiro folga. São meus instantes de oportunidades latentes, a cada sexta envelheço uns cento e vinte anos. Sextas me são gigantes agora.
Um dia, como sabia, ela voltou. E seu amor era de verdade. Ela não hesitava mais em marcar as reticências após “verdade”, sabia que elas ficariam, passando o tempo ao lado dessa noção por muito tempo, até que o tempo as demitisse. Amor de verdade... São dois tons na mesma palavra três vezes. Ela pisava, eu chorava. Não era sexta, mas eu vivia crescendo numa mesma hora, num mesmo instante de infinita sabedoria na pausa de uma menina dentro dos meus olhos, contaminando minha idade. Parei de passar às sextas. Virei eterno; durante tanto tempo acumulando cento e vinte, duzentos e quarenta, trezentos e sessenta, fiquei parado na varanda. Ela voltara com os mesmos livros, mesmo vestido voando pelo joelho; chegava em casa pedalando e assobiando de chinelos claros como se não pisassem no chão de rua. Tirava-os pra pisar no templo imaculado. Era uma bela dança: minha menina na minha varanda, esqueceu de morrer, resolveu que ia nascer dia após dia. Não dava importância a dias especiais, a amores velados no risco, a palavras de ordem e muito menos a olhos inquiridores. Minha ânsia por viver em sua pele como suor nunca seria saciada porque ela nunca pararia de suar e suava despojando-se de todas suas vidas. Descobri que vira passos demais, eram várias Saras.
O último dia, sem superstições era uma sexta, não sei porque motivo, eu estava fora de casa, fazia algo para alguém, para minha mãe e talvez para suas loucuras, mas andava apressado pra casa nos meus passos cotidianos quando percebi o assobio: Sara pedalava graciosamente ao meu lado. Levantei a vista e vi que nossas casas ficavam uma de frente pra outra. Parei a pressa e a acompanhei como se fizesse parte de seu caminho. Ela parou em frente à sua casa e eu, em frente à minha. Entramos. Ambos subimos nossas escadas e cumprimentamos nossas respectivas mães; ela foi pro seu banheiro lavar as mãos e eu esperei que acabasse dentro do meu. Saímos juntos com as toalhas na mão. Ela olhou pela janela, pela primeira vez, pra minha casa. Tudo que fiz foi tentar me aproximar ao máximo dos seus olhos. Ela me via perto de si, como um amor de verdade, ela me via por inteiro, como eu sempre quis, até não me ver mais, nunca mais. Naquele dia fiquei horas seguidas em gratidão aos meus anos infinitos; as horas me cercaram até que eu cansasse da varanda. Ela me viu, Sara me viu em sua varanda.