FÊMEA?! (crônica descritiva)

 
        Meu caso com Angra dos Reis teve início em 1980.

   Amor à primeira vista!

     Voltávamos de Barra Mansa para o Rio pela Dutra e, como sempre fazíamos em viagens, resolvemos variar o caminho, optando  por seguir  placa indicativa “ANGRA DOS REIS”.
 
   Seguimos por esta via de acesso sem imaginar que ali se iniciava uma das fases mais felizes de nossas vidas.
 
   Estradinha asfaltada, ladeada por ipês amarelos e flamboyants, estreita, e com trechos bem sinuosos. Por isso, perigosa. Caminho encantador, ao longo do qual vão surgindo pequenas vilas, todas com ar bucólico, característica desses lugares. 

   Cercas  vivas de papoulas e hibiscos substituem muros nas casinhas, geralmente pintadas de branco. Algumas vacas com seu caminhar arrastado, característico destes animais, andam soltas pelas ruas de terra batida, entoando gostosa sinfonia  de sinos, alheias aos latidos ameaçadores de cães, contidos pelo tamanho do inimigo... 

 
   Ali o tempo parece passar em outro ritmo — lentamente. Não se vê o corre-corre dos grandes centros urbanos. 
 
   Mais ou menos no meio do percurso situa-se Lídice – cidade de porte médio, parada para o cafezinho, pão de queijo e guloseimas para as crianças. E o famoso xixi.
 
   De volta ao carro, pé na estrada, e já estamos perto de cruzar três pequenos túneis no alto da serra que dão acesso à encosta leste da Serra do Mar. Datam do século XIX e servem de ligação entre Barra Mansa e Angra dos Reis.
 
 Embora perfurados em rocha, constantemente vaza água das abóbodas e paredes. No piso, limo nas pedras pés-de-moleque, cogumelos silvestres pelos cantos e poças d’água eternas. As crianças os chamavam “Os túneis que choram”...
 
   Ao sairmos do terceiro túnel, escuro, abre-se aos nossos olhos, às nossas almas, um dos cenários mais lindos que já vi: à frente, a estrada com o mesmo piso dos túneis, ainda levemente molhado pelo sereno – alguns trechos não recebem luz do sol –, tendo como limites laterais muitas, muitas touceiras de Marias-sem-vergonha de cores variadas. De resto,  a Mata Atlântica intocada (sim, ainda existe!), em várias tonalidades de verde, entremeada de ipês roxos, amarelos e embaúbas. Sobre as copas das árvores mais baixas, restos de nuvens ainda não dissipadas pelo sol.

   Cheiro de natureza  em seu estado mais puro.
   Foi neste momento que se deu o encontro: dirigi o olhar para o horizonte e me deparei com um quadro onde pintaram um mar azul salpicado de muitas ilhas, rodeadas de águas verdes, de beleza inimaginável, indescritível mesmo. Paramos o carro e, em êxtase, nos tornamos cinco expectadores privilegiados daquele cenário mágico. Minutos de silêncio e encanto...
 
   Passaram-se quinze dias de sonhos até a aquisição da última casa de condomínio recém lançado, cujo comprador não conseguira honrar a primeira prestação.
 
   Seguiram-se anos de muita felicidade e grande rotatividade de familiares e amigos. 
 
   Nas comemorações de fim de ano, a casa que já era pequena, ficava menor ainda. Quem se atrevesse a levantar do colchonete para o xixi noturno, certamente dormiria sentado o resto da madrugada.

     Mas valia a pena... Era uma grande farra!
     Alguns dormiam dentro do carro mesmo.   Os mais jovens, em barracas de camping, na praia do condomínio. Farofadas maravilhosas. Inesquecíveis!

   Praia e pesca eram atividades sagradas.

   Na época, tínhamos um pequeno barco toc-toc. Para nós, verdadeiro iate!
   Dentre tantas histórias vividas no paraíso Angra, recordo-me de uma inesquecível:
   Diego, sobrinho de minha mulher, veio morar no Rio aos cinco anos e, apesar da diferença de cinquenta anos entre nós, me elegeu seu maior amigo. Claro, tinha barco, fama de grande pescador (atribuída por mim mesmo em nossas conversas) e ele era fissurado por pesca!

   Amigo perfeito!
 
   Quase enlouqueceu de tanta felicidade em nossa primeira pescaria.
 
   No barco, agora maior, eu, minha mulher,  sua doce Aninha, a irmã e o marido, e os dois filhos – Diego e Daniel. João, nosso caseiro/marinheiro, nos acompanhava.
   Daniel mergulhava no livro que trouxera. Leitura era a pescaria dele.
 
   Diego acompanhava com olhos de estreante meus movimentos no preparo dos apetrechos, sem perder um detalhe, ansioso pelo início das atividades que realmente interessavam – a pescaria! Parecia hipnotizado. Em transe mesmo.

   Anzóis lançados à água, o tempo nos dando tempo para imaginar o tamanho do peixe a ser fisgado...

   Troca de isca de vez em quando e nada de peixe. Nenhuma beliscada. Apenas expectativa...

 
   Percebia-se ansiedade e certo ar de frustração em Diego. É daqueles que quando querem algo, tem que ser pra já, e a realidade não correspondia ao seu desejo.
 
   Eu também nutria alguma preocupação. Afinal, como ficaria minha alardeada fama de pescador depois de um fracasso? Mais tarde ele aprenderia que pesca, antes de tudo, é um exercício de paciência.
 
   De repente, não sei se por força de pensamento dele ou meu, ou os dois somados, minha linha sofreu um puxão forte, seguido do movimento reflexivo  que todo  pescador faz ao fisgar um peixe – os olhos dele quase saltaram.
   
   Assustou-se mesmo! (Jamais esquecerei sua carinha de espanto).

   Fisgada de anchova, pensei. E era mesmo.
   Recolhi a linha e tirei da água uma bela anchova de uns oitocentos gramas (verdade!) Tá bom, setecentos. Menos, não aceito!
 
   Os olhos de Diego brilhavam fixos, ora no peixe, ora em mim. Sua admiração  cresceu exponencialmente! Sacramentei minha fama! Naquele momento tornei-me praticamente  semi-Deus...    E eu, fingindo naturalidade... (coisa de pescador e de ídolo)

   Aí, o momento indelével:

   — Tio Nilton, você é o máximo!!!
   Imagina meu olhar de superioridade e o sorriso, contido, para os outros pescadores... — entre pescadores há uma competição subterrânea, silenciosa, uma espécie de guerra fria. Os sorrisos são meros disfarces.

   João, profissional como eu, ficou na dele. Apenas olhava com o rabo dos olhos. 
   (Acho que esqueceram um mandamento: não cobiçarás o peixe fisgado pelo próximo!)
 
   Os amadores, estupefatos! (No fundo, eu também...)
 
   A maioria das espécies vive em cardumes e anchova é uma delas. Assim, não passou um minuto e João fisgou outra anchova; e do mesmo tamanho!
 
   Diego ficou olhando... olhando... ar de frustração em sua carinha... (O máximo, só tio Nilton! — deve ter pensado.) João, orgulhoso, olhava-me pelos cantos dos olhos, com o tal sorriso contido, mas com viés de vingança ou deboche, sei lá... Disfarçava, fingindo-se entretido com a retirada da anchova do anzol.
 
   Diego, cabisbaixo, pensativo, girou o corpo lentamente, acompanhado de suave movimento de voleio com o braço esquerdo; afastou-se de João e, com ar de desprezo pelo acontecimento, com voz insegura e reticente, soltou mais esta:

   – Ah...mas o dele é fêmea!   (pequeno machista - rs)
 
   Demos boas gargalhadas e retomei o lugar no podium com a fama um pouco arranhada, mas ainda íntegra...
 
   Por pouco não troquei o nome do barco de Navegar é Preciso para Nilton, o Máximo!



 Foto: Diego em pescaria noturna.