A farsa do Direito

A FARSA DO DIREITO

Prof. Dr. Raimundo Gomes Meireles

O Grande artista plástico Kokoschaka certo dia pintou a face de Karl Kraus (1874 – 1936) e este, ao receber a tela, o declarou: “sem dúvidas, é possível que aqueles que me conhecem, não me reconhecerão. Mas me reconhecerão, certamente, aqueles que não me conhecem”. Assim se apresenta o direito. Os que dizem conhecê-lo, são os que por ventura, mais se distanciam da suposta verdade a ele atribuída.

Os romanos estavam certos quando afirmavam: o Direito não se define. Ulpiano é do parecer que qualquer tentativa de definição do direito é algo muito perigoso. Entendemos que o Direito não é lei, norma, comportamento, instituição, mas uma arte. A arte de persecução da justiça. Pois o artista do fenômeno jurídico deve possuir habilidades suficientes para saber trabalhar com a lei, as normas, a jurisprudência, o comportamento etc.

Hans Kelsen disse que o “Direito é norma”. Por outro lado, Santi Romano afirma “direito é instituição”.

A tensão entre norma e instituição talvez possa nos ajudar a compreender o Direito. Na medida em que o conhecemos como arte da negação de uma suposta verdade, ou ainda, estratégia em busca de uma justiça irreal, quem sabe um dia poderemos identificar o ideal da justiça inexistente. Oxalá, com isso se possa identificar elementos para fundamentar a velha crença no ideal do justo, da justiça.

Numa sociedade capitalista, sem sombra de dúvida, vivemos o Direito que formaliza um discurso, o qual se torna mediação ideológica entre o Estado e a sociedade civil.

A ideologia, por outro lado, procura construir a noção do fenômeno jurídico que nega a verdade a qual supostamente acreditamos ser real. Assim, ele aparece no campo da ideologia como aquilo que ele próprio não o é. Apresenta-se todo coerente, sistemático, pleno e objetivo. Pura ilusão! Essa forma negativa de se apresentar, esse gesto de não ser, de negar aquilo que aparenta ser o que é, surge ao nosso imaginário como fundamental e se faz necessário para que o direito seja uma forma de controlar as relações dos indivíduos e a sociedade, onde se legitima as relações sociais essencialmente desiguais.

No momento em que se oculta a realidade do direito ele se exterioriza como algo mais aparente. Outra ilusão! O Direito se apresenta como técnica, método, pura arte. Por isso mesmo, o estudo de tal fenômeno requer vocação para quem o estuda. Sem vocação não se conquista a arte do aprendizado do Direito.

Ademais, lamentavelmente, os operadores do Direito na sua maioria, ao ensinar a arte dos juristas nas faculdades, na sua maestria, não se preocupam com a essência do fenômeno jurídico.

Pois, é de se evidenciar que o Direito não se enquadra na lógica do “ser”, mas próprio na indução do “dever ser”. É o Estado, ideologicamente, submetendo a regras iguais, pessoas economicamente desiguais. Agindo assim, reafirma as desigualdades reais. Desta feita, acredita Alaôr Caffé, um dos nomes mais significativos na contemporaneidade da jusfilosofia Nacional.

Para se estudar e alargar o conhecimento do Direito, estendendo-se à sua essência, obrigatoriamente não se faz pela única via do aprendizado formal universitário. A exemplo de vários mendicantes do direito que conhecemos nas ruas de Roma, pessoas que não freqüentaram faculdades, mas motivadas pela vocação elaboram petições, com argumentações fascinantes que poucos advogados são capazes de construírem. São os práticos, os “homens de estrada”, os verdadeiros construtores e reconstrutores de idéias, a quem Roma nunca os desprezou pelo seu caráter de sagacidade, esperteza e capacidade em desmascarar as ideologias dos foros Romanos.

Somente à causa que nos pode convencer a entender essas pessoas vocacionadas ao estudo do direito, é a existência de uma vocação. Acreditam que o direito esteja nas pessoas e não fora delas. E ao mesmo tempo em que ele se apresenta como arte, desdobra-se em uma vocação. Quem conseguir viver sua vocação, lutando contra todos e quaisquer tipos de falsos valores aos quais se apresentam a nós, ideologicamente mascarados, saberão discernir o ideal do compromisso da vocação, da instrumentalização do saber dos indivíduos.

Daí, se acreditar que seria no mínimo satisfatório que os operadores do Direito entre nós brasileiros, ensinassem aos jovens estudantes de direito não o estudo dos códigos, das normas postas, mas o Direito que na verdade é: a essência dos enunciados, a exteriorização do rito da vida, não em detrimento da morte do outro, mas viver em plenitude consigo e com os outros, gloriar-se das conquistas e da exteriorização do Direito dos outros.

Pena que a aparência das precisões formais, a plena racionalidade em si e, por si, como se ela estivesse grudada ao real, para se poder dominá-lo, pelas operações práticas e intelectuais, como um suposto que se pudesse manipular pela e simplesmente vontade humana, não se apresentam como na verdade o são, mas mascaradas pela ideologia do poder do capital.

A existência do justum, como diziam os romanos, é a prova de que a humanidade precisa evoluir. Basta enfatizar dois princípios primordiais: tolerância e conscientização. Há quem espera, entre nós mortais, o advento da utopia; de uma sociedade sem Direito, mas isto não passa de mera ilusão. Constantemente temos a sensação de que o Direito é vingativo. Imaginemos: se com ele as coisas já estão ruins, sem ele, não ficaria pior ainda? Permaneçamos convictos, quando ele deixar de existir, é por que a humanidade não só cresceu em descobertas tecnológicas ou científicas, mas desceu ao grau zero de sua origem, à sua mais perfeita evolução.

Enfim, entende-se que Direito não é aquilo o que ensinamos e nem pensamos o que seja em nossas faculdades. Ele é uma arte, uma vocação, tendo-se sempre presente consigo a virtus da vigilância, que por outro lado, e por isso mesmo, uma farsa, quando carregado de ideologia.

Raimundo Meireles
Enviado por Raimundo Meireles em 03/09/2010
Reeditado em 06/09/2010
Código do texto: T2476067
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